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Quarta-feira, Junho 25, 2025

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

A nação usa-nos como números e o resto é contabilidade, cálculos, estatísticas, enchem-nos de cal e esvaziam a sua fúria nos inocentes que se seguem, somos nada nesta quimera esperada após nascermos.

VIII

Os instantes são a única garantia que temos. Cicatrizes. Moléculas. Variedades esquecidas. Vazios. Uma panóplia bélica de acontecimentos e feridas enjauladas na alma. São os principais sentimentos que possuímos sempre, ora dentro, ora fora da alma. Cada segundo é um precipício, um salto para o desconhecido, onde somos todos cobardes, somos verdades guardadas na nossa vaidade, somos filhos desta inconstância tão incessante, desta ocorrência tão ela, onde tudo é nada de repente, sofremos a nossa própria incoerência, assumimos o que nos obrigam a fazer e por medo ou cobardia desfilamos a passerelle das novas criatividades e modelos verdes nesta escola onde se viva a sério. Somos instantes. Incessantes. Nenhum dos nossos gestos é surpresa, somos a repetição do que definhamos, somos falíveis, frágeis, uma casa arrombada na sua mais sagrada esperança, varridos pelos medos e vontades, mas é a ânsia que nos leva e vamos. Um dia qualquer o coração, para tudo é definido depois e roubados pelos que ficam sem sequer pensarem quem fomos, levam-nos a um castigo tão severo, esquecem-nos tão simplesmente e o herói jaz nas suas fragilidades tão reais como um salpico de nadas à janela de que sonhos e idos tão indigentes dos que nos pensam ou usam. Somos frágeis demais. Valemos a circunstância e nela o presente, o resto é o que deixamos. Roubam-nos tudo depois de mortos. Não somos mais do que isso, dois ou três dias depois deitam-nos ao lixo das memórias, as lágrimas secam, os sons dos batimentos cardíacos são opacos e a vida é isso, somos o que consideram sermos enquanto pudermos viajar desinteressadamente na cabeça dos outros. Deixamos de valer depois de desaparecermos da vista dos outros, as idas à rua, fica a fotografia do que fomos e quem pensa em nós?

(s.d.), “Guerra Colonial: exército português em operações.”, Fundação Mário Soares / AMS – Arquivo Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114089 (2020-5-31)

A nação usa-nos como números e o resto é contabilidade, cálculos, estatísticas, enchem-nos de cal e esvaziam a sua fúria nos inocentes que se seguem, somos nada nesta quimera esperada após nascermos. A pátria não para sem nós, nada se esmorece depois do fim dos nossos sonhos e ficamos por aí, nem sei se cemitério para tantos, mas lugar para nos despejarem sem apelo nem agrafo. Somos pequenos nadas acumulando momentos e com eles fazermos o resto, o que ficará são sentimentos que levamos com a nossa própria saudade de viver, ansiamos viver, ninguém se entrega à morte apenas porque sim, a morte é horrível, deve ser uma coisa inexplicável, os mortos deixam de comunicar connosco e esse silêncio incomoda-nos. Mas então, em que lugar o vazio é tanto?, vejo definhados a lutar pela vida e mato-me por tão pouco, deixo de ter vontade de viver tão simplesmente e o oco das circunstâncias leva-me, somos enquanto formos, a partir daí o que restar de nós é nada. Dois paus a fazerem de cruz, quatro ou cinco tábuas uma caixa e a partir daí heróis esquecidos num cemitério qualquer, em nome da pátria e viva a pátria. Sentir a morte dos outros é uma coisa horrível. Sentir a nossa bem pior. É um eco distante a chamar por nós. Uma voz desconhecida. Estranha. É horrível.

– de que adianta então falarmos?

Do outro lado a rua é um enfadonho vazio, nu, sinto tudo cru num cozinhado de momentos, não vejo vultos e apenas sinto um vazio deslavado da existência, tantas vezes sinto uma estranha sensação de fim para tudo, nada percorrido com os anos perdidos e em que campos a minha juventude?

– talvez nem me consigas entender.

Que dicotomia de vontades, entender sem ser entendido e vice-versa, acho que não quero neste momento entender, estou perdido numa nuvem que me inebria os sonhos, as viagens que nunca fiz no alcatrão sóbrio das luzes da estrada e da cidade a minha casa onde, perde-se o rasto da vontade, a astúcia, definhamos a cada segundo e tudo é levado ao colo como passageiros do tempo, tantas vezes as coisas nos parecem acontecer tão depressa, tantas o contrário, o tempo estaciona a sua viagem num quintal qualquer e a gente ali, a olhar para o nada como se a vida fosse ali cair, às vezes a rapidez de tudo nem nos permite pensar, sonhar, quantas horas durmo? Talvez segundos nesta arritmia azucrinante, quando tudo irrita, onde a sede, a fome e tu?

– nunca ninguém te apontou uma arma aos miolos?

– que culpa meu Deus, que culpa.

Os instantes são a única garantia que temos. Tudo é tão fugaz, tudo se espera e nada acontece, tudo se esvai e a gente ali, parados a ocultar o morto, a enterrar o tempo e nada acontece, limar-mos o que acontece com letrinhas faladas,

– tão bom que ele era!

e o calor lá fora a irritar-me. O pó na estrada nestas aldeias de tantos camaradas esquecidos, eu nas estradas dessas aldeias esquecidas tentando beber esquecimentos apenas num olhar e deslizar por essas estradas de tanto pó enferrujar saudades, onde que flores e campas e nem um ai, nem um segundo para nos recordarem,

– o Esperança, casado, uma filha.

a filha nem lá, casado nem mais a vida parte-nos as ligações, deixamos de ser osso com osso somos vertebras separadas por cartilagens, um dia velhos e que cartilagens, a pele seca os ossos secam os olhos deixam de ver tão bem e até de ouvir nos esquecemos, a vida tão ingrata quando tanto demos por ela. A minha é bem pior, é grande de mais para as pessoas se recordarem, há muitas casas a enfeitarem o horizonte, luzes e música, festejam um fim-de-semana em família, aqui é na verdade tudo isso, uma aldeia assim faz-nos querer mais e viver mais, aqui as memórias duram menos tempo e a gente passa assim os dias. Na mesinha de cabeceira fotos onde ainda a memória, recursos para esquecer e sentir saudades,

– este era… aquele um grande camarada…

saudades são sonhos acordado, e quantas fotos Deolinda, a vida trouxe comigo.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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