Quinzenal
Director

Independente
João de Sousa

Sexta-feira, Junho 27, 2025
Início Site Página 20

As artimanhas de Medina e o espanto de Pizarro

0

As artimanhas de Medina para reduzir artificialmente a divida publica e enganar os portugueses, e o espanto de Pizarro que parece desconhecer as faltas mais elementares no SNS como a de médicos, macas e quartos nas urgências e as longas filas de espera nos Centros de Saúde e não resolve nada

Neste estudo explico de uma forma clara, utilizando dados do Banco de Portugal, a artimanha que Medina/Costa pretendem fazer para, na sua propaganda, apresentarem a divida publica abaixo de 100% do PIB, apesar dela ter aumentado em mais de 53000 milhões durantes os governos de António Costa, e analiso também a situação dramática do SNS em que mais de metade dos investimentos do seu Orçamento inicial aprovado pelo governo não são sistematicamente realizados, em que a divida a fornecedores privados explodiu devido à suborçamentação crónica, e o aumento de mais 671.000 portugueses sem médico de família durante os governos de Costa, apesar deste ter prometido, por diversas vezes, acabar com tal situação.

 

Estudo

As artimanhas de Medina para reduzir artificialmente a divida publica e enganar os portugueses, e o espanto de Pizarro que parece desconhecer as faltas mais elementares no SNS como a de médicos, macas e quartos nas urgências e as longas filas de espera nos Centros de Saúde e não resolve nada

O “Expresso “ de 5/1/2024 divulgou uma notícia com o título “OPERAÇÃO SECRETA PARA DEIXAR A DIVIDA PUBLICA ABAIXO DE 100%” que revela que o governo de Costa/Medina não olha a meios, mesmo artificiais, para colocar a divida abaixo dos 100%, procurado através de artimanhas e engenharias financeiras construir uma “realidade paralela” diferente da real para depois, utilizando os media que se prestem a isso, manipular a opinião pública. E essa “operação secreta” consiste em transferir para entidades publicas uma parte da divida do Estado, embora fique a dever essa importância as essas entidades e tenha de a pagar. Mas como a divida que esteja em entidades publicas não é considerada pela União Europeia no cálculo da chamada divida pública na ótica de Maastricht, é esta que depois o governo utiliza, em percentagem do PIB (pois em valores absolutos, euros, continuou a aumentar) na sua propaganda. Para tornar clara e de fácil entendimento esta artimanha de Medina elaborou-se o gráfico 1.

 

A DIVIDA DIRETA TOTAL DO ESTADO É MUITO SUPERIOR Á DIVIDA NA ÓTICA DE MAASTRICHT

O gráfico 1 foi construído com dados divulgados pelo Banco de Portugal que se encontram disponíveis no seu “site” para quem estiver interessado a aceder diretamente a eles

Gráfico 1 – Aumento da Divida direta (total) do Estado (a azul) e da divida pública na ótica de Maastricht (a laranja) entre dez.2015/nov.2023 – Milhões € – banco de Portugal

Como refere o próprio Banco de Portugal no seu “site” “A dívida direta do Estado corresponde à dívida em que o subsetor Estado é o devedor efetivo” e a divida pública na ótica de Maastricht “exclui as dívidas de entidades das administrações públicas que sejam detidas por outras entidades deste setor”. Portanto há uma parcela da divida do Estado que não é considerada na ótica da divida de Maastricht porque foi adquirida por entidades públicas. Em nov.2023, eram 12220 milhões € (280098M€-267878M€ como mostra o gráfico 1). Só Fundo de Estabilização Financeiro da Segurança Social tinha aplicado em divida publica portuguesa cerca 66% da sua carteira, ou seja, 17622 milhões €, e essa importância tem de ser paga pelo Estado aquando do vencimento dessa divida. Mas Medina considerou que este valor era ainda insuficiente e por isso, de acordo com a notícia do Expresso, deu ordem a entidades publicas, já que as tutela, para comprar “pelo menos 3 mil milhões de titulo de divida pública a privados, seguradoras e bancos, para colocar a divida pública abaixo dos 100% do PIB” para assim se poder apresentar em Bruxelas como o campeão da redução da divida (talvez seja a “porta giratória” de acesso a um alto e bem remunerado cargo europeu à semelhança de Vítor Gaspar). E internamente como o ministro que conseguiu reduzir a divida abaixo de 100% embora à custa, nomeadamente, de cortes dramáticos no investimento público que causou a profunda degradação dos equipamentos públicos, a destruição do SNS e da Escola pública, o aumento da pobreza e das desigualdades em Portugal.

Como mostra o gráfico 1, entre dez.2015 e nov.2023, a divida direta e efetiva do Estado (total) aumentou em 53726milhões € (passou de 226372 milhões € para 280098 milhões €), e divida pública na ótica de Maastricht aumentou em 32132 milhões € (passou de 235746 milhões € para 267878 milhões €). Portanto a divida aumentou com os governos de Centeno/Leão/Medina/Costa contrariamente ao que pretendem fazer crer à opinião pública. Em nov.2023, a divida direta (total) do Estado correspondia a 112,6% do PIB, enquanto a divida pública na ótica de Maastricht representava 107,7% do PIB. É desta forma que se manipula a opinião pública e se engana os portugueses. E quanto se mais se aproxima dos 100% maior é a tentação de fazer cortes e artimanhas para atingir o “valor mágico de 100%”.

 

O CORTE BRUTAL NO INVESTIMENTO PUBLICO QUE CAUSOU UMA PROFUNDA DEGRADAÇÃO DOS EQUIPAMENTOS PUBLICOS (SNS, Escola Pública, etc.) E O ESMAGAMENTOS DOS SALÁRIOS DOS TRABALHADORES AGRAVANDO AS SUAS CONDIÇÕES DE VIDA E DESTRUINDO A ADMINISTRAÇÃO PUBLICA, TUDO PARA REDUZIR A DIVIDA A UM RITMO 3 VEZES SUPERIOR AO U.E.

As políticas dos governos de Costa/Centeno/Leão/Medina tiveram consequências dramáticas para a Administração Pública causando a degradação dos equipamentos e das remunerações dos trabalhadores da Função Pública que a tornou incapaz de recrutar trabalhadores com as qualificações e competências que eram necessárias para disponibilizar os portugueses serviços públicos na quantidade e qualidade que necessitam. E isto para reduzir de uma forma drástica e num período muito curto o défice e a divida publica, o mito de “contas certas”, que teve consequências dramáticas para o país e para os portugueses. E o processo utilizado era o do governo aprovar no Orçamento o Estado inicial investimentos que, depois devido aos obstáculos criados pelas tutelas, não eram realizados como revela o gráfico 2 com dados do governo.

Gráfico 2 – Orçamento inicial de investimento das Administrações Públicas em 2022 e em 2023 (barras a azul), investimento realizado (barras a verde), e não realizado (barras a vermelho) – Milhões € – execução financeira – DGO -Ministério das Finanças

Como mostra o gráfico com dados do Ministério das Finanças em 2022 e 2023 (o mesmo sucedeu em anos anteriores) uma parte do investimento aprovado no Orçamento inicial para as Administrações Públicas não foi realizado. Em 2022, 2460 milhões € ficaram por serem executados financeiramente. Em novembro de 2023, ainda estavam por executar financeiramente 4263 milhões €, ou seja, 42,9% do previsto para 2023. E isto resulta fundamentalmente de obstáculos criados pelo Ministério das Finanças (no Estado para se realizar um investimento, mesmo que ele conste do orçamento aprovado pelo governo e pela Assembleia da República, necessitava sempre de uma autorização prévia do Ministério das Finanças, o que é um absurdo e que servia só para empatar) e da destruição da Administração Pública que não possui os técnicos qualificados e com as competências necessárias para fazer “andar mais depressa” os processos. O que está a acontecer no “PORTUGAL 2030”, financiado pela U.E., é dramático pois devia ter sido iniciado em 2020 e, em 2024, ainda está na fase dos “avisos” e nada executado. Mas é desta forma também que Costa/Medina reduzem o défice e a divida. Mais de 450 escolas esperam por ser reabilitadas (em Loures, os alunos fizeram greve em 11/1/2024 com o apoio dos pais e professores porque o sistema elétrico dispara quando em pleno inverno e com temperaturas muito baixas se liga mais de um aquecedor, e a reabilitação que estava marcada para 2011 interrompida pelo governo de Passos Coelho, depois nada foi feito), os hospitais não têm médicos, nem camas, nem mesmo macas. E o país vai assim. E o PS no seu congresso fala de um país de “maravilhas” que ninguém conhece. E Costa parece indiferente a tudo isto, no seu afã de fazer inaugurações e ri feliz.

 

A IGNORÂNCIA CERTAMENTE FINGIDA DE PIZARRO, E OS CORTES NOS INVESTIMENTOS NO SNS SÃO AINDA MAIORES

Observe-se o gráfico 3 com o valor dos investimentos aprovados e o valor dos realizados em 2022 e 2023.

Gráfico 3 – Investimento previsto no Orçamento inicial do SNS em 2022 e em 2023 e execução financeira, e UE não foi realizado – Milhões € – DGO, Ministério das Finanças


Em 2022, dos 509 milhões € de investimentos previstos inicialmente para o SNS, aprovados pelo governo e pela Assembleia da República, ficaram por executar financeiramente 279 milhões €, ou seja, 54,8% do total previsto. Em 2023 a situação é ainda mais dramática. Dos 753 milhões € de investimentos aprovados para serem realizados no SNS, em nov.2023 ainda estavam por executar financeiramente 496 milhões €, ou seja, 65,9% do aprovado para o ano. Fica assim claro uma das causas importantes dos graves problemas que enfrenta o SNS, onde falta tudo, por falta de investimento, que se põe no papel para enganar a opinião pública e profissionais, mas depois não se realiza.

Um facto insólito perante o caos no SNS é a reação de Pizarro. Perante as filas de espera a altas horas da madrugada nos Centros de Saúde para conseguir uma consulta o ministro responde que não devia acontecer, como ignorasse a situação.

Perante as muitas horas que as ambulâncias dos bombeiros com doentes têm de esperar nos hospitais por não haver nem médicos, nem macas nem quartos, a reação de Pizarro é como fosse a 1º vez que soubesse. Perante a falta de médicos e o fecho de muitos serviços nas urgências tem sempre uma desculpa, e diz que está em vias de resolução, mas depois continua tudo na mesma. É um ministro palavroso, ausente, que não resolve nada e que revela grande incompetência.

 

A AFIRMAÇÃO DE PIZARO QUE O SNS TEM OS RECURSAOS FINANCEIROS QUE PRECISA, A ENORME DIVIDA DO SNS A PRIVADOS E A SUA TRANASFORMAÇÃO PELO MINISTRO NA “DIVIDA DO SNS COM O VALOR MAIS BAIXO DA ÚLTIMA DÉCADA”

Já que o PS gosta muito de fazer comparações com 2015, observe-se o gráfico 4 sobre a divida com dados do Portal do SNS.

Gráfico 4 – Divida Total do SNS a fornecedores externos entre 2015 e 2023 – Milhões € – portal SNS


Como revela o gráfico, com dados do próprio SNS, desde 2015, a divida do SNS a fornecedores privados tem continuamente aumentado, como revela a linha de tendência automática a vermelho. Em nov. 2015 a divida a privados era de 1480 milhões € e, em nov.2023, atingia 2619milhões€, ou seja, mais 77%. Isto prova que a suborçamentação do SNS tem sido cada vez maior o que determina, por um lado, faltas constantes de consumíveis e de tecnologias de saúde essenciais com consequências para os doentes e, por outro lado, preços inflacionados pelos prestadores que sabem que vão receber com grandes atrasos. E depois no fim do ano, utilizando o que não se investe e mais um reforço paga-se uma parte dessa divida, e continua-se com uma enorme divida que transita para o ano seguinte (1087 milhões € segundo o anúncio de propaganda do Pizarro que está no Portal do SNS).

 

PORTUGUESES SEM MÉDICOS DE FAMILIA AUMENTARAM EM 671021 COM OS GOVERNOS DE COSTA

O gráfico 5, com dados que estão disponíveis no Portal do SNS revela o crescimento dramático dos residentes em Portugal sem médico de família que é também um indicador da degradação do SNS durante os governos de Costa.

Gráfico 5 – Total de utentes sem médico de família – Portal SNS

Entre o início de 2016 e dez.2023 os utentes sem médico de família aumentaram em 671021 apesar das sucessivas promessas de Costa, não cumpridas, que em 4 anos todos os portugueses teriam medico de família. E agora Costa/Pizarro dizem que vão resolver, não contratando mais médicos, mas obrigando os atuais médicos a trabalhar mais horas dando um incentivo material. É este também o país real que Costa ignorou no seu discurso de Natal aos portugueses.


O filme Resistência denuncia as guerras destruidoras de vidas e sonhos humanos

Com um tema superatual, o filme Resistência (2023), de Gareth Edwards – em cartaz na plataforma de streaming Star Mais –, traz um debate sobre o desenvolvimento da “inteligência artificial”, capaz de rivalizar com os humanos, absorvendo todas as suas capacidades cognitivas e emocionais.

Nenhuma novidade até então, porque o cinema sempre contou com ficções científicas, prevendo o desenvolvimento de robôs quase humanos, ou mais. Do mesmo modo que dois grandes clássicos, 2001 – uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, onde um computador que controla uma nave espacial enciumado elimina o motivo do seu ciúme; e Blade Runner – o Caçador de Androides (1982), de Ridley Scott, onde robôs mais fortes e tão inteligentes quanto os humanos se revoltam com a sua escravização.

Resistência chama a atenção pela sua filmagem, fotografia e também por mostrar como o império estadunidense age para se apoderar das novas tecnologias e controlar o mundo para os seus interesses.

No original em inglês The Creator (O Criador), a tradução para Resistência, tem até mais a ver com a obra, que mostra, com muitos efeitos especiais, a guerra declarada pelos Estados Unidos, como representantes do Ocidente, como sempre fazem para destruir a inteligência artificial, que não por acaso se refugiou na Ásia.

Além de sua beleza estética, a ficção parece uma história banal onde um ex-agente da inteligência (suposta) estadunidense, Joshua (John David Washington), é contratado para identificar e descobrir a arma secreta desenvolvida pela inteligência artificial que pode deter os avanços da inteligência (também suposta) natural. Ele aceita a encomenda para recuperar a sua esposa grávida, Maya (Gemma Chan), aliada dos androides superevoluídos, que preferiu permanecer com os rebeldes da inteligência artificial.

Inteligência artificial ameaça menos a humanidade do que os próprios seres humanos

Mas vai além. O filme remonta às guerras, como a do Vietnã, por exemplo, quando em perseguição aos androides as forças ocidentais são extremamente violentas e torturam com ameaças inclusive crianças para forçar os adultos a denunciarem os rebeldes. Uma personagem diz que as máquinas têm mais coração do que eles que se dizem humanos.

A obra mostra que a inteligência artificial ameaça menos a humanidade do que os próprios seres humanos. Como diriam os marxistas, é a luta de classes. No filme, o imperialismo não mede esforços para destruir as máquinas, e assim manter o seu poder incólume.

Mas a arma secreta que pode vencer o Ocidente e suas armas poderosíssimas é um robô em forma de criança, Alphie (Madeleine Yuna Voyles) que transmite paz e tranquilidade. Não são as máquinas que querem a guerra e o controle do planeta, mas os poderosos e ricos que se sentem ameaçados e lutam não para defender a humanidade, mas o seu próprio status quo.

Remonta à realidade quando assistimos atônitos a falsa retórica dos Estados Unidos contra os bombardeios constantes à Faixa de Gaza pelo governo de Israel, matando indiscriminadamente. E os seus patrocinadores do Ocidente usam essa falsa retórica de que querem impedir as forças bélicas israelenses de continuar matando civis, inclusive um grande número de crianças. Quando na verdade encobrem os crimes do governo de extrema-direita de Israel, como faz grande parte da mídia brasileira.

A ficção de Edwards traz um debate bem atual sobre as supostas ameaças da inteligência artificial à sobrevivência da humanidade. Mas, como disse certa vez o cientista Neil deGrasse Tyson, a ciência deve estar a serviço e ser acessível a toda a humanidade. Certamente, quando chegarmos a isso não teremos muito a temer.


Texto em português do Brasil

Morreu Laurindo Vieira, sociólogo, académico e intelectual angolano

Quem conheceu Laurindo Vieira ficou profundamente consternado com a notícia da sua morte ocorrida no dia 11 de Janeiro, em Luanda, vítima de um crime hediondo. Tive o prazer de conhecer o Laurindo no ISCED de Luanda, há 16 anos.

Em 2006, Laurindo Vieira, Filipe Zau (actual Ministro da Cultura) e eu, fomos apresentados por Filemon Buza, na altura Chefe do Departamento de Ciências da Educação, como os três docentes que iriam trabalhar no Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (ISCED de Luanda) para reforçar a equipa de docentes na área das Ciências da Educação.

Este dia para mim foi muito importante e histórico porque tive o primeiro contacto com alguns dos principais pensadores angolanos da área da educação com prestígio e elevado nível intelectual.

Nessa reunião estiveram presentes, para além de nós, outros queridos colegas e amigos de elevada craveira intelectual, nomeadamente Pedro Domingos Peterson e Maria Luísa Araújo (ambos falecidos), Isaac Paxe, entre outros, pedagogos que marcaram de forma significativa a mudança e a inovação educacional em Angola.

Foi neste contexto que tive a satisfação de iniciar amizade com Laurindo Vieira, um dos grandes sociólogos da educação que Angola conheceu. Ele dizia-me com orgulho que era discípulo de Ronal de Stoer, sociólogo da educação português, falecido em 2005, e que revolucionou a sociologia da educação em Portugal.

Laurindo referia com regozijo o nome de Stoer porque foi seu orientador na tese de doutoramento.

Mas, outros momentos ligados a Laurindo Vieira ficaram registados na minha memória, que recordo agora com saudade e quero partilhar, em jeito de homenagem.

Arlindo Isabel, Director da Editora Mayamba, em 2010, precisava de alguém para apresentar o meu livro intitulado “Reflexões sobre Educação” e estava com dificuldade em encontrar o nome da pessoa ideal, tendo-me perguntado: “Pode ser o Dr. Laurindo Vieira?” e eu respondi de imediato: “Esse sim, é um intelectual a sério..”, tendo sido o apresentador da minha obra lançada em 2010 no ISCED de Luanda.

Laurindo Vieira era um personagem sob o ponto de vista intelectual bastante “provocador”, no bom sentido do termo, muito característico dos sociólogos, e vaidoso, mas uma vaidade simples e que contagiava pela simpatia e doçura.

Recordo-me de lhe ter dito uma vez que a obra “Reflexões sobre Educação” tinha vendido 400 exemplares logo no dia da apresentação. Imediatamente, com o seu sorriso habitual, referiu: “Isso aconteceu porque fui eu o apresentador do livro” (sorrisos).

Há um outro episódio revelador da personalidade de Laurindo que aconteceu no âmbito de uma Mesa Redonda promovida pelo Ministério do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia, em que foram prelectores, Filipe Zau, Isaac Paxe, Esperança Peterson e eu.

Na minha intervenção, na medida em que também sou provocador, afirmei no auditório “temos docentes pedagogicamente incompetentes”. No debate que se seguiu, no seu estilo habitual, Laurindo Vieira perguntou: “Prof. Azancot, o que significa pedagogicamente incompetentes?”.

Este era o carácter de Laurindo Vieira, uma figura incontornável da elite intelectual de Angola e que se assumia de corpo e alma como sociólogo da educação porque gostava de questionar com profundidade todas as questões sociais na expectativa de provocar debate, reflexão e mudança, uma personalidade que é espelhada através da sua obra com o título “Angola – A dimensão ideológica da educação”.

Título de uma obra de Laurindo Vieira

Natural da Província do Uíge (Dange-Quitexe), doutorado em sociologia da educação, Laurindo Vieira começou por ser docente no ISCED de Luanda, foi Director do Instituto Superior de Serviço Social e mais recentemente foi nomeado Reitor da Universidade Gregório Semedo de Luanda.

Ultimamente tornou-se comentarista na TV Zimbo para analisar questões de ordem social e cultural. Ironicamente, Laurindo Vieira, o mesmo que comentava sobre “como combater a criminalidade, causas, consequências e soluções”, com 60 anos de idade, foi cobardemente assassinado por bandidos armados, em plena luz do dia, no Bairro Patriota – Luanda, depois de ter saído de um Banco.

Laurindo Vieira tinha a convicção de que ao ensinar sociologia estava a contribuir para que os professores melhorassem as suas práticas pedagógicas, neste sentido, considero que o seu enorme contributo foi fundamental para a consolidação da sociologia da educação em Angola.

Pela amizade e excelente colegialidade profissional que mantive com o saudoso Laurindo Vieira, com profunda tristeza, transmito à família enlutada os meus sentimentos de pesar pela perda irreparável do nosso ente querido.

Laurindo Vieira, descansa em paz!

Reabilitação

0

A reabilitação é comumente associada a clínicas de tratamento para pessoas com determinados tipos de dependência, como o álcool, substâncias psicotrópicas, sexo, doenças mentais, entre outros. Em alguns meios de festas excêntricas e alucinadas, com misticismos de psicadelismo, de deboche acentuado, de luxúria incomparável, não faltam os exageros e o descontrole de tantas e tantos que se entregam aos excessos tóxicos de substâncias legais e ilegais e de comportamentos moralmente questionáveis, mas animalescamente desejáveis.

De festa em festa, alguns vão caindo e começa-se a notar a sua ausência até que o rumor e a certeza do que se passa caem nos ouvidos dos que se mantêm de pé e inabaláveis. O Francisco Azinhaga havia desaparecido depois de ter saído directamente da última festa para as Urgências com sinais de mais um coma alcoólico. Estava a fazer tratamento numa Unidade de Reabilitação para alcoólicos.

Quando saiu, era o mesmo Francisco, com melhor aspecto, arranjadinho, sem baba a cair-lhe pelo rosto e sem hálito matador de bichos invisíveis. Ah, isto é que é reabilitar uma pessoa, pensei eu. Diferente por dentro, melhor por fora, igual, mas com melhor aspecto. Ao passar pela D. Clara, mãe do Pedro, amigo de infância, conhecido como Pedro Aspirador, perguntei-lhe que era feito do Pedro. A mãe lá me disse, com as lágrimas a fugirem dos cantos dos olhos e a rebolarem pela sua face, os lábios tremendos e descaindo, que “O Pedro está em casa. Passou um mau bocado, a maldita da droga ia-lhe arruinando a vida, menino, mas agora está bem, está comigo.” Fui ver o Pedro aspirador, subi a casa da mãe e ali estava ele, o Pedro, já não aspirava, já não sofria de hemorragias nasais, já não ficava acordado a dançar descontroladamente até ser corrido de bares e discotecas. Era um Pedro bem composto, estava a ler, cumprimentou-me, estava limpo há dez meses, não cheirava a vomitado, não tinha a camisa manchada, estava calmo. Isto sim, era uma boa reabilitação, tinha saído do Centro há uns bons meses, era o Pedro de outros tempos, igual, mas melhorado de aspecto, parecia tão novo como há muitos anos, sem dúvida.

Num dia destes, de ventania feroz arrastando folhas de árvores pelo ar, mais parecendo um mini-tornado que se desenvolvia à minha frente, veio bater-me no focinho uma página central de um jornalixo que quase me asfixiava. Desenvencilhei-me com esforço e dificuldade dessa página malcheirosa, o jornalixo cheira a pus e a excremento seco de galinhas que devem limpar a cloaca a essas páginas desses jornais durante a sua impressão.

Como o vómito estava iminente, arranquei-a da minha cara e ia deitá-la ao chão quando reparo na notícia: “Ricardo Von Haff sai de clínica de tratamento para adição em sexo.” Bem, o sexo é sempre um tema interessante e, então, decidi pôr a mola que anda sempre comigo no nariz (faço-o frequentemente por causa do odor a latrina que se sente em muitas situações e em muitos locais, até quando estou em casa a ver televisão) e li a notícia. Havia uma foto do Ricardo Von Haff antes de entrar na Clínica e outra depois de sair.

Segundo a notícia, essa figura mediática (não a conhecia, mas devia ser) tinha comportamentos sexuais descontrolados e excessivos, participava em “órgias” (gosto da palavra “órgias”, parece-me melhor do que “orgias” por me lembrar os Bórgias, a Lucrécia Bórgia, os escândalos sexuais dessa família, a fama sombria e lúbrica, o nepotismo, os enormes bacanais com dezenas de mulheres que satisfaziam os apetites sexuais do cardeal Bórgia) e, acabado o tratamento ao vício do sexo, estava de volta a casa, recuperado dessa adição e aparecia ele de sorriso aberto ao lado da sua esposa, que tinha uma expressão séria sem dentes.

O Ricardo Von Haff estava com bom aspecto, estava até com melhor aspecto nesta foto actual do que naquela em que fora fotografado enquanto tarado sexual (a expressão da mulher inquietou-me: se um ex-alcoólico não pode nunca mais na vida tocar em álcool, se um ex-toxicodependente não pode tocar mais em drogas, será que um ex-adicto em sexo não pode mais… Coitada da mulher, Ricardina Mascarenhas e Mello, se bem que com aquele corpinho e aquela carinha…). Não sei se lhe posso chamar bom aspecto ou melhor de aspecto, mas diferente, muito diferente a Sílvia e confesso que não consigo dizer se fez bem ou mal. A Sílvia Torrinha, ou melhor, a Torrona para os amigos (por ser marrona e de nada lhe ter adiantado), conseguira um segundo prémio no Euromilhões no valor de algumas centenas de milhares de euros. Não ficáramos amigos, mas conhecíamo-nos da zona. A Torrona tinha desaparecido, há muito que não a víamos nas redondezas e, claro, a notícia espalhou-se, sem grandes certezas, mas com indubitáveis garantias de verdade. A Sílvia tinha ido para uma Clínica de Reabilitação nos Estados Unidos para tratar a dependência ao jogo. Depois de receber centenas de milhares de euros do segundo prémio do Euromilhões, a Torrona começou a estourar milhares em raspadinhas. Parecia que frequentara quiosques, bombas de gasolina, papelarias, estações dos CTT, qualquer loja onde houvesse raspadinhas, teria até desenvolvido uma tendinite nos tendões dos dedos indicador e polegar de tanto raspar o jogo do povo. Na verdade, só parecia, pois ninguém tinha notado nas lojas circundantes tal situação e, se tivessem, a Sílvia, em vez de Torrona, passaria a ser Sílvia Raspona.

Pois bem, a Sílvia voltou dos Estados-Unidos, mas não veio reabilitada, veio reconstruída. Aquela história do vício no jogo serviu para esconder a verdadeira missão de Sílvia Torrona: não era reabilitação, fora uma reconstrução. A Sílvia apareceu com uma fisionomia completamente alterada, nem parecia a mesma, nem se pode dizer que tenha sido recauchutada, isso era para pneus de gente de carro de luxo anterior a 2007 até há pouco tempo, pois ela fora, verdadeiramente reconstruída. A Sílvia era outra: tinha implantes de cabelo louro com madeixas matizadas a substituir a sua fraca cabeleira rala e castanha, os olhos tinham mudado de cor, as lentes mudaram-nos de castanho amendoado para azul de águas das Maldivas, o botox alisara-lhe tanto a testa que uma mosca ao lá pousar escorregara, o ácido hialurónico afastara-lhe o bigode chinês do rosto como os Estados-Unidos desejavam que a China se afastasse de Taiwan, o silicone salino dera-lhe bochechas na cara do tamanho de maçãs bravo de Esmolfe, o nariz parecia o da Cher depois de cinquenta rinoplastias, os lábios, por influência de injecções de botox, pareciam duas postas mirandesas, tudo, obviamente acentuado por uma maquilhagem de cores vivas e de produtos para alisar as imperfeições do rosto.

No peito, a timidez das suas maminhas tinha desaparecido e surgiam agora com a pujança retórica oca e falsa de discursos populistas, inchadas e berrando tão alto que se viam (ou melhor, ouviam) a muitos metros de distância; um top curto revelava a secura da barriga, lisa e com a aparência de anos a malhar em ginásios, com muito suor e transpiração, muito sofrimento e privação, a cinta não parecia de vespa, parecia de fim de palito e para baixo, as nádegas pareciam ter sido transplantadas de uma brasileira, assemelhando-se a duas bolas de basquetebol. A Sílvia Torrona fora reconstruída e agora chamavam-lhe Sílvia Boa Zona, a zona que todos os homens desejavam explorar.

Realmente, entre reabilitação e reconstrução há diferenças. Há quem queira equipará-las, mas uma coisa não é a outra. Luís Montenegro, líder do PSD, no âmbito da operação “Vórtex”, que investiga crimes de corrupção na Câmara de Espinho, teria beneficiado de benefícios fiscais dados à obra numa casa antiga que lá adquiriu. O presidente do PSD pediu em carta dirigida ao Presidente da Câmara de Espinho, seu companheiro de partido e futuro vice-presidente da bancada parlamentar do partido laranja, que devia “considerar (…) como obras de reabilitação urbana” a intervenção feita no seu imóvel e comunicar isso mesmo à Autoridade Tributária “para todos os efeitos legais e fiscais”. A Certidão de Reabilitação Urbana que lhe foi atribuída permitiu-lhe a isenção/redução de IMI, IMT e IRS, entre outras deduções em tributos municipais. Um engenheiro civil explicou à SÁBADO que o que aconteceu ali não foi uma reabilitação, mas sim uma obra nova, já que se demoliu a casa que ali existia previamente, pelo que não haveria lugar a benefícios fiscais”.

Assim como a Sílvia Torrona, ou melhor, Sílvia Boa Zona, terá Luís Montenegro iludido todos os que pensavam que ele iria fazer uma reabilitação do imóvel e não uma reconstrução. Se a Sílvia escondeu as suas verdadeiras intenções viajando para os Estados-Unidos, provavelmente o empreiteiro responsável pela obra terá colocado um taipal escuro ou uma rede opaca para que se não descobrisse a verdadeira “reabilitação” desse imóvel antigo. Montenegro não reabilitou nada e deitou tudo abaixo, incluindo a fachada, para se evidenciar um mamarracho moderno no meio de dois belíssimos edifícios de gosto clássico e que preservam a memória de uma Espinho que não se pretende apagar com modernices cosméticas de fachada, não fez a vistoria prévia obrigatória, como manda a lei, e ainda teve a autarquia (do seu amigo Pinto Moreira) a aplicar a lei retroativamente ao seu caso, conseguindo poupar perto de 100 mil euros em impostos, só no IVA por, supostamente, ter “reabilitado” e não reconstruído.

Comovente foi ver Montenegro acenar com um dossier gordo de papelada durante uma conferência de imprensa promovida para clarificar o caso, esclarecido com a exposição do calhamaço sem que ele apresentasse qualquer explicação semântica sobre a diferença entre “reabilitar” e “reconstruir”. Será que um hipotético futuro primeiro-ministro, com a ajuda do “Chega”, não sabe o que distingue um de outro verbo e o seu amigo Pinto Moreira também não?

Não sendo um caso de “reabilitação” nem de “reconstrução”, a privatização dos CTT deveria ter sido uma situação de “manutenção” das obrigações sociais da empresa de distribuição de correios e de serviços postais. Segundo Catarina Martins, ex-Coordenadora do BE, entre 2005 e 2012, a “empresa quando era detida pelo Estado deu um lucro de 500 milhões de euros” e foi vendida por pouco mais de 920 milhões de euros, valor equivalente ao que é exigido para se obter uma licença para constituição de um banco, o que veio a acontecer sem que os privatizados CTT tivessem desembolsado um cêntimo.

Além do dinheiro que deixou de entrar nos cofres do Estado para, supostamente, servir a população e a economia portuguesa, os CTT foram, sem dúvida, “reconstruídos”. Quando nos dirigimos a uma estação dos CTT, só queremos enviar uma carta ou uma encomenda, não queremos comprar raspadinhas, cautelas, livros, kits de escapadinhas, brinquedos para crianças, não pensamos estar a entrar num quiosque nem numa livraria. Não há-de tardar até que os seus funcionários nos proponham se não queremos levar alheiras de Mirandela, leite ou derivados do leite, um queijo amanteigado ou um quarto de presunto, uma embalagem de tofu ou de seitan para vegetarianos.

Enfim, depois de terem criado um banco, não tardará muito a que tenhamos Supermercados CTT: envie uma carta ou encomenda e aproveite os nossos descontos no fumeiro de Vinhais, leve duas embalagens de picanha da Argentina e oferecemos uma raspadinha, compre um “pack” de dez chocolates da marca Nestlé e envie gratuitamente uma carta para um seu familiar na Suíça.

Se ainda podemos ver nascer os Supermercados CTT, já podemos ver morrer as estações de CTT que não dão lucro nem são viáveis nas zonas mais recônditas e desfavorecidas do país, fechando-se postos que durante anos serviram para que muita gente, sobretudo idosos, recolhessem as suas reformas e pensões e recebessem cartas e encomendas de amigos e familiares. Para poupar, transferiram esses serviços para padarias, quiosques, juntas de freguesia, mercearias, enfim, tudo locais especializados e dotados de todas as infraestruturas necessárias para prestar um serviço de qualidade a cidadãos que parece que foram esquecidos por causa da sua interioridade.

A empresa foi privatizada no tempo da Troika, durante o governo de Passos Coelho e Paulo Portas, e, imagine-se, logo na altura foi nomeada administradora dos CTT Céline Abecassis, esposa de… Carlos Moedas, Secretário de Estado de Passos Coelho e responsável pela coordenação do programa da Troika, tendo intervindo na privatização dos CTT.

A esposa de Carlos Moedas, actualmente presidente da Câmara municipal de Lisboa, é uma mulher extremamente dotada e competente, tendo sido administradora não executiva independente da Greenvolt, empresa de energias renováveis, até abril de 2023, integra a administração de várias empresas, como a Vista Alegre ou a CUF, tendo sido também administradora de várias outras empresas, e tendo adoptado o apelido do marido, chama-se agora Céline Dora Judith Abecassis-Moedas. Fica-se com a sensação de alguma similitude com os Bórgias, haverá algum nepotismo, sem se suspeitarem de “órgias”, como é óbvio.

Porém, a actual polémica do jornalixo e do telelixo prende-se com a ligação do BE e do PCP à compra de acções pelo Governo PS, em 2019, dos CTT. De acordo com os famintos órgãos de desinformação e de procura de intrigas estéreis, os dois partidos, BE e PCP, que defendem a nacionalização da CTT para que voltem a servir bem as populações e possam contribuir com milhares de milhões para a “Res Publica”, teriam acordado a compra de acções dos CTT por parte do Governo para viabilizarem o orçamento de Estado.

Ora bem, o Governo PS comprou as acções (ainda ninguém percebeu porquê) a troco do voto favorável dos outros dois partidos. Ora, os ingratos BE e PCP, depois da compra de 0,24% da EDP, votaram contra o orçamento de 2021 e fizeram cair o Governo.

O BE e O PCP são uns vendidos e uns falsos: quem percebe de economia e de contas saberá que 0,24% dos CTT transformam-se como por magia em nacionalização da empresa e por isso deviam ter aprovado o orçamento que chumbaram, não só por esta questão, mas por muitas outras. Neste caso dos CTT, em vez de “reabilitação” deveria haver “reversão”, pois já em 2019 os CTT falharam todos os 24 indicadores de qualidade, o mesmo se sucedendo em 2022, com evidentes prejuízos para toda a população.

Se, no caso da casa de Montenegro, assistimos a uma “reconstrução” lesiva para o Estado, no caso dos CTT, assistimos a uma “destruição” lesiva para o Estado e para a população.

Momentos históricos da Liga dos Campeões

0

A UEFA Champions League, um verdadeiro colosso no mundo do futebol europeu, tem sido palco de momentos que transcenderam o desporto. Desde 1955, esta competição tem testemunhado atuações que se eternizaram na história do futebol.

Real Madrid vs Bayer Leverkusen (2002)

O golo de pontapé de bicicleta de Zinedine Zidane, em 2002, é um dos mais icónicos da história da competição. Esta obra-prima técnica ajudou o Real Madrid a conquistar a Liga dos Campeões, deixando uma marca na memória dos adeptos. O momento ocorreu na final disputada em Hampden Park, quando Zidane, com um movimento de pura genialidade, aproveitou em pleno um cruzamento aéreo de Roberto Carlos. O seu remate de pé esquerdo não deu hipóteses ao guarda-redes do Leverkusen, selando assim a vitória por 2-1 e garantindo ao Real Madrid o seu nono título europeu.

Liverpool vs AC Milan (2005)

O “Milagre de Istambul”, onde o Liverpool virou um jogo que perdia por 3-0 ao intervalo, é uma das maiores reviravoltas na história do futebol. A final, disputada no Estádio Olímpico de Ataturk, parecia decidida ao intervalo, com o Milan confortavelmente à frente graças aos golos de Paolo Maldini e Hernán Crespo. No entanto, num espaço de seis minutos na segunda parte, o Liverpool igualou o marcador com golos de Steven Gerrard, Vladimir Smicer e Xabi Alonso. A partida foi para as grandes penalidades, onde o Liverpool acabou por triunfar por 3-2, com Jerzy Dudek realizando defesas incríveis.

Real Madrid vs Sheriff Tiraspol (2021/22)

Neste jogo, realizado no Santiago Bernabéu, o Sheriff Tiraspol, uma equipa moldava relativamente desconhecida no cenário europeu, desafiou todas as probabilidades ao vencer o gigante espanhol. Esta é uma demonstração clara da imprevisibilidade de um evento desportivo que surpreende a todos, incluindo adeptos de apostas desportivas experientes que sabem como aproveitar oportunidades como Betclic código promocional para otimizarem as suas apostas.

O golo de Jasurbek Yakhshiboev deu uma vantagem inicial à equipa visitante, e apesar do Real Madrid ter empatado com um pénalti de Karim Benzema, foi o impressionante remate de longe de Sebastien Thill, nos minutos finais, que garantiu uma vitória histórica e inesperada por 2-1 para o Sheriff.

Barcelona vs Manchester United (2011)

Em 2011, o Barcelona, com uma vitória convincente por 3-1, demonstrou um futebol de classe mundial, com Messi no centro de tudo. A final, disputada no emblemático Estádio de Wembley, foi um palco onde o talento do Barcelona brilhou intensamente. Além do golo espetacular de Messi aos 54 minutos, que colocou o Barcelona em vantagem por 2-1, Pedro e David Villa também marcaram. Esta vitória não só garantiu ao Barcelona o seu quarto título da Liga dos Campeões, mas também foi um jogo onde o talento extraordinário de Messi foi exibido no maior palco europeu, encantando os fãs de futebol com a sua habilidade.

Real Madrid vs Atlético Madrid (2014)

A final de 2014 foi marcada pelo golo de empate de Sergio Ramos no tempo suplementar, levando o jogo para o prolongamento onde o Real Madrid selou a sua décima vitória na competição. Esta final, realizada no Estádio da Luz em Lisboa, foi um clássico madrileno carregado de emoção e tensão. O Atlético Madrid esteve perto de conquistar o seu primeiro título europeu com um golo de Diego Godín aos 36 minutos, mas Sergio Ramos, aos 93 minutos, mudou o destino do jogo com um cabeceamento memorável. No prolongamento, o Real Madrid goleou três vezes através de Gareth Bale, Marcelo e Cristiano Ronaldo.

Lionel Messi: Primeiro Golo pelo Paris Saint-Germain (2021/22)

Na sua primeira temporada no PSG, Messi demonstrou que continuaria a ser uma força dominante no futebol europeu. O seu primeiro golo pelo clube, um remate espetacular contra o Manchester City, na Liga dos Campeões, não apenas garantiu a vitória naquele jogo, como também simbolizou um novo capítulo na sua carreira. Messi, numa jogada de combinação com Kylian Mbappé, encontrou espaço e disparou um remate inesquecível para o canto superior da baliza.

Jan Oblak: Tripla Defesa (2016/17)

Jan Oblak, do Atlético de Madrid, protagonizou um dos momentos mais espetaculares na história dos guarda-redes na Liga dos Campeões com uma tripla defesa numa partida contra o Bayer Leverkusen. Com o Atlético a defender uma vantagem agregada, Oblak mostrou reflexos extraordinários. Primeiro, ele bloqueou um remate potente de Julian Brandt, e em seguida negou um golo quase certo a Kevin Volland, para depois se levantar rapidamente e parar o terceiro tento em sequência. Esta série de defesas, ocorrida em questão de segundos, foi fundamental para manter o Atlético na liderança.

Lionel Messi: Golo de Livre Contra o Liverpool (2018/19)

Na primeira mão da semifinal da Liga dos Campeões, disputada no Camp Nou, Messi estava numa forma sublime. De aproximadamente 35 metros, Messi desferiu um remate magistral que sobrevoou a barreira e encontrou o canto superior da baliza, deixando o guarda-redes Alisson Becker sem qualquer hipótese de defesa.

Estes momentos são apenas algumas das pérolas que adornam a rica história da Liga dos Campeões. Eles não só refletem a excelência e o espírito competitivo do futebol europeu, mas também ressoam no coração de milhões de fãs ao redor do mundo.

Alternativas de localização de um Aeroporto

Nos anos 1960 e 1970 teve um grande difusão, de modo geral a partir dos Estados Unidos, e dos processos de decisão sobre aproveitamentos hidráulicos e de investimentos em transportes, o recurso à denominada Análise Custos – Benefícios para a preparação de decisões no domínio das políticas públicas, tendo sido publicados neste âmbito manuais de avaliação de projectos por parte designadamente da OCDE e do Banco Mundial. Foi-se falando também em Análise Multicritérios. A literatura produzida foi chegando a Portugal, e consultores estrangeiros vieram, sobretudo nos anos 1970, ministrar acções de formação que eram essencialmente acções de sensibilização. Noutros casos dirigentes e técnicos portugueses frequentaram acções no estrangeiro. No entanto em finais dos anos 1970 era ainda muito reduzido entre nós o número de quadros com uma formação e experiência aprofundadas no domínio da avaliação de projectos.

Frequentei no Departamento Central de Planeamento uma acção de formação, organizada pela Engª Maria do Céu Guerra, que viria a ser a primeira coordenadora do Núcleo de Análise de Projectos e Racionalização de Decisões Orçamentais – atentem no nome! – do Departamento, conduzida pelo consultor da OCDE Jacques Fayette. O Engº João Mendes Espada, que dirigia os Serviços de Planeamento Sectorial, havia já instituído internamente um procedimento de pontuação de programas e projectos sujeitos anualmente a “visto” de autorização de despesas com alguns traços de análise multicritérios(i). Mas era tudo muito incipiente. Mais tarde, na procura do “full costing”, procurou-se definir com rigor o conceito de projecto, dando-lhe princípio, meio e fim, identificando a curva das despesas plurianuais de investimento, pedindo informação sobre a despesa anual em fase de funcionamento, e até, quando os responsáveis políticos não o proibiam, sobre projectos a lançar em anos seguintes, na óptica de constituição de uma carteira de projectos, sendo de referir também que se preparou a diferenciação entre programas que englobavam projectos a lançar pela Administração Pública e programas de apoio ao lançamento de projectos pelo Sector Empresarial Privado. Mas o Departamento, salvo no caso do acompanhamento do lançamento de projectos do Sector Empresarial do Estado, nunca avaliou grandes projectos.

Para os técnicos e para os académicos, revestia-se de algum interesse na altura a colectânea Cost-Benefit Analysis, organizada em 1972 para a Penguin por Richard Layard, reimpressa com alterações em 1974 e novamente reimpressa em 1976 . Foi esta a versão que adquiri quando comecei a leccionar Finanças Públicas em Económicas(ii). Ocorreu-me voltar a compulsá-la quando peguei na “Avaliação de opções estratégicas para o aumento da capacidade aeroportuária da Região de Lisboa” elaborada pela Comissão Técnica Independente, por incluir uma análise crítica, da autoria de Ezra J. Mishan, datada de 1970, dos trabalhos de outra Comissão, que se propunha na altura estudar a melhor localização de um terceiro aeroporto de Londres(iii). Mishan, que nos deixou há apenas uma dezena de anos – ver o seu obituário no Guardian – e que teve um papel relevante no estudo dos aspectos microeconómicos das intervenções públicas, chama a atenção no seu artigo para os efeitos redistributivos das decisões, que viriam aliás a ter relevância na metodologia de avaliação preconizada pelo Banco Mundial. O artigo mostra que o trabalho de uma Comissão pode e deve ser criticado, sem que se coloquem pedidos de providências cautelares para impedir a publicação dos seus Relatórios Técnicos ou se denunciem os seus membros à Procuradoria-Geral da República como terá sucedido com a CTI portuguesa que recentemente divulgou o seu Relatório Ambiental.

Comissão Técnica Independente

Foi a adesão à CEE, actualmente União Europeia, que obrigou muitos técnicos portugueses a (aprender como) preparar projectos para candidatura a financiamentos comunitários, foi a legislação comunitária que introduziu a obrigação de a avaliação de opções ser tratada como um exercício de avaliação de impacto ambiental. Daí que a CTI tenha procedido a uma “Avaliação Estratégica Ambiental” para discutir a localização do Novo Aeroporto de Lisboa, redenominando a discussão, mais amplamente, como de opões estratégicas para o aumento da capacidade aeroportuária da Região de Lisboa, socorrendo-se em parte de estudos já existentes e identificando todas as políticas, designadamente comunitárias que têm de ser tidas em conta. O Relatório preliminar, ou melhor, um conjunto de relatórios, está em discussão pública e institucional.

Simplificando muito (vale a pena fazer download), foram retidas 8 alternativas de localização, descritas como opções estratégicas (OE), estando identificadas as que foram excluídas e as razões de exclusão:

Opções Estratégicas Tipo Descrição
OE 1 Dual AHD principal + Montijo complementar
OE 2 Dual/Único Montijo principal + AHD complementar (com evolução para o Montijo substituir integralmente o AHD)
OE 3 Único CTAlcochete (que substitua integralmente o AHD)
OE 4 Dual AHD principal + Santarém complementar
OE 5 Único Santarém (que substitua integralmente o AHD)
OE 6 Dual AHD principal + CTAlcochete complementar
OE 7 Único Vendas Novas (que substitua integralmente o AHD)
OE 8 Dual AHD principal + Vendas Novas complementar

Bem como 5 Factores Críticos para a Decisão (FCD), ou sejam Segurança Aeronáutica (FCD 1), Acessibilidade e Território (FCD 2), Saúde humana e Viabilidade Ambiental (FCD 3), Conectividade e Desenvolvimento Económico (FCD 4), Investimento Público e Modelo de Financiamento (FCD 5). Ou seja, é efectuado, sem se utilizar tal denominação, um exercício de análise multicritérios, que não visa eleger “o melhor projecto” através de uma soma ponderada de pontuações, mas essencialmente identificar grandes vantagens e grandes obstáculos. Diga-se a propósito que o Contrato de Concessão da Exploração da ANA à Da Vinci é tratado desenvolvidamente no âmbito de uma discussão tornada necessária pelo estudo das questões conexas com o FCD 5.

Aquando da publicação do Relatório Ambiental preliminar a opinião publicada mostrou que os jornalistas e alguns comentadores não estavam desatentos: a circunstância de a linha de Alta Velocidade ir dar uma voltinha pela outra margem para servir Alcochete e regressar por uma travessia do Tejo que ainda não existe não iria onerar a factura do investimento público? A CTI começou por esclarecer que a travessia Chelas-Barreiro estava prevista nos investimentos ferroviários e não deveria contar para os custos da opção, o que me fez evocar uma história antiga sobre o Complexo do Cachão: perante o argumento que a recolha do leite pelas povoações não era rentável, o à data comandante da Região Militar do Norte disponibilizou as viaturas militares para assegurar tal recolha(iv). Conceda-se que salvo no caso da opção por Santarém, a questão se colocaria sempre e registe-se uma explicação posterior da CTI esclarecendo que o aumento dos custos com a passagem da Alta Velocidade para a margem sul, seria compensada com a redução dos custos originados pela maior dificuldade dos trabalhos na margem norte. Anoto entretanto que numas linhas inseridas no Boletim Municipal do Seixal pelo Presidente da respectiva Câmara se manifesta apoio ao Relatório da CTI no pressuposto de que a terceira travessia será rodoferroviária e não apenas ferroviária. Peanuts?

Há outra peculiaridade no Relatório da CTI que é a de não considerar nos Factores Críticos de Decisão os custos de investimento directamente associados a cada uma das opções estratégicas, mas apenas o valor líquido actualizado para a concessionária decorrente das respectivas opções, sendo que este é sempre positivo, nuns casos mais, noutros casos menos, daí que não seja necessário encarar subsidiação pública (sem prejuízo de, como a CTI reconhece, a questão das taxas aeroportuárias praticadas ser relevante). Foi pedido um estudo jurídico específico do contrato de concessão que detectou numerosos riscos associados à sua gestão e de qualquer forma a CTI, que sabe que a concessionária preferiria uma opção Montijo e combaterá as outras, chama a atenção para a necessidade de, por parte do Estado, existir um único gestor do contrato. Mesmo antes da decisão final sobre a localização a CTI definiu um conjunto de investimentos prioritários no Aeroporto Humberto Delgado. O Governo, por sua vez, antes de passar a fase de gestão por força da aceitação do pedido de demissão do Primeiro Ministro, determinou à concessionária a realização de investimentos, mas não exactamente os mesmos que os previstos pela CTI. E a procissão ainda vai no adro…

Já vi escrito que o Relatório da CTI é para rasgar(v), pois que a palavra final será da concessionária e que qualquer outra via gerará conflitos e obrigará o Estado a gastar muito dinheiro, subvencionando a construção do novo aeroporto ou compensando a concessionária pelo fim da concessão. Aliás António Costa parecia ter desistido de considerar a hipótese de Alcochete, referindo vagamente a existência de compromissos contratuais e insistindo em que os grandes investimentos tivessem sempre um apoio de 2/3, isto é do PS e do PSD. O Tribunal de Contas divulgou há dias uma auditoria à privatização da ANA, cujas conclusões provocaram algum abalo, mas a decisão de privatizar e a falta de cuidado na configuração do contrato terão por si só custos muito superiores ao que se poderá ter perdido em termos de encaixe.

Luís Montenegro (foto: site PSD)

Em relação ao PSD parece ter-se criado um modelo de características profundamente perturbadoras: os seus governos contratam com interesses estrangeiros e estes quando se instalam cooptam uma alta figura do dito PSD para os seus órgãos locais de governação empresarial. Foi assim no caso da Lusoponte com o Engº Joaquim Ferreira do Amaral, no caso da EDP – última tranche com o Dr. Eduardo Catroga, e no caso da ANA com o Dr. José Luís Arnaut, sem que estejam em causa a honestidade pessoal e a capacidade de gestão dos cooptados. Resta saber se se instalou simultaneamente alguma teia subterrânea que criasse dentro do PSD lobbies desses interesses estrangeiros, como p. A forma cândida como Luís Montenegro aceitou a constituição de uma CTI deixa entender que não estaria pessoalmente comprometido, mas é de muito mau agoiro a forma como reagiu aos resultados dos trabalhos da Comissão. Terá Luís Montenegro um lado A e um lado B?

António Costa (Por João Pedro Correia, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=129618608)

No que diz respeito ao PS – Costa, o apadrinhamento durante anos da opção Montijo, em relação ao qual em 11 de Março de 2020 já escrevi aqui “A irreversibilidade (psicológica) do projecto do Aeroporto do Montijo” foi acompanhado pela mobilização de toda a militância socialista nos concelhos do Norte do distrito para votar, sem debate público, o apoio dos órgãos municipais ao projecto e para eliminar os últimos resistentes comunistas. Até Marcelo Rebelo de Sousa ajudou propondo para o novo Aeroporto o nome de Mário Soares. Como se estivéssemos nos tempos da implantação dos caminhos de ferro e todas as sedes de concelho tivessem de ter uma estação ou pelo menos uma estação que incorporasse o nome da terra ainda que situada a dezenas de km. Ora a implantação de um aeroporto pode induzir algum desenvolvimento (e subidas de preços dos terrenos…) mas em muitos países europeus um aeroporto é uma ameaça ao sossego e uma fonte de poluição e o primeiro-ministro cessante também sabe fazer este discurso(vi). António Costa TEM um lado A e um lado B.

A irreversibilidade (psicológica) do projecto do Aeroporto do Montijo

Como nota final, as opções introduzidas pelo projecto de Santarém, que ao que percebi, a CTI considera dentro da esfera de influência da concessionária e que levantam questões de Segurança Aeronáutica, não deixaram de ser avaliadas. Os promotores reagiram prometendo mudar a orientação da pista e até dando a entender que a CTI é que deveria ter divulgado previamente como fazer a proposta… Ainda que o aeroporto fique fora da cidade de Santarém, que, explicou-me um dia um colega economista, fica no centro geométrico do país, poderá ficar no Distrito. É que o Campo de Tiro da Força Aérea fica 20% no concelho de Alcochete – na freguesia de Canha, algo excêntrica em relação ao concelho – e 80 % no concelho de Benavente, como informou o respectivo Presidente, aliás eleito pelo PCP. Portanto o tráfego destinado a Lisboa irá aterrar no Aeroporto Internacional de Benavente mas, por Alta Velocidade, Santarém e até Coimbra ficam perto.

 

Notas

(i) Totalizando-se os pontos dos vários critérios para definir o sentido da proposta quanto à concessão de “visto”.

(ii) Em acumulação com o Departamento Central de Planeamento convenientemente sediado na Av. D. Carlos I, isto é do outro lado da rua.

(iii) “What’ s Wrong with Roskill ?” in Journal of Transport Economics and Policy, vol 4, nº 3 pp 221-34, 1970

(iv) Ouvi esta história à Engª Elvira Hugon, minha colega no Departamento Central de Planeamento, prematuramente desaparecida, que nessa altura exercia funções no Ministério da Agricultura.

(v) Pessoalmente passei a minha juventude no bairro de Alvalade, próximo do Aeroporto da Portela, e fiz o meu 2º e 3º ciclos no Liceu Padre António Vieira, em que uma vez por aula o professor era interrompido pela passagem de um avião visível da janela. Sempre pensei que nos 50 anos seguintes se desenvolvesse na aviação comercial a descolagem vertical (V.T.O.L.), mas o facto é que não fomos por aí.

(vi) Embora a Câmara do Seixal tenha sempre defendido a opção Alcochete só muito próximo das eleições de 2021 se decidiu a publicar no Boletim Municipal um pequeno mapa explicando que a aproximação dos aviões ao Montijo se faria por cima do concelho.

Há um ano, no meio do furacão golpista…

No dia 9 de janeiro de 2023 relatei em artigo publicado aqui, no Brasil 247, as horas que passei no dia anterior, dentro do furacão golpista que atentou contra nossa democracia. Por imprudência ou compulsão jornalística, corri para a Esplanada dos Ministérios ao saber do que estava acontecendo, fui agredida algumas vezes por grupos exaltados e em algum momento temi pelo pior, quando ameaçaram me dar “uma aula de jornalismo” atrás do Ministério da Defesa, um estacionamento mal iluminado.

Agora que a tentativa de golpe completa um ano, pensei em republicar aquele artigo (Golpe adentro, quase linchada…), que saiu também em um jornal do Chile e em outro da Argentina. As lembranças individuais ajudam a formar a memória coletiva. Constatei, porém, que de algumas coisas só tomei conhecimento depois e que algumas, nem registrei. Por isso optei por atualizá-lo, deixando disponível o link do original.

Como relatei naquele dia, corri para a Esplanada e comecei a abordar os grupos de verde e amarelo, perguntando o óbvio: por que estavam ali, por quem e como foram chamados, qual era o objetivo? Eles não respondiam. Ou me empurravam ou seguiam andando. Fiz duas ou três entradas ao vivo na TV 247, que estava acompanhando os acontecimentos como podia. Entre a Catedral, por onde acessei a Esplanada, e o Itamaraty, não vi um só policial.

Naquele momento, já depois das 15 horas, muitos grupos de ativistas estavam subindo da Praça dos Três Poderes, escapando do reforço policial que havia chegado. Lula, em Araraquara, já havia assinado digitalmente o decreto de intervenção. Ricardo Cappelli fora nomeado interventor na segurança pública do DF e já estava no comando da reação do governo.

Descendo a Esplanada, meu objetivo era chegar ao Congresso e à Praça dos Três Poderes, onde tudo estava acontecendo. E no caminho eu ia cruzando com os grupos de verde-e-amarelo já em fuga. De alguns ouvia que petistas infiltrados é que estavam “quebrando tudo lá embaixo” para culpá-los.

Eu estava ao vivo, falando em “movimento golpista” quando um grupo me cercou e me tomou o celular. Os internautas viram quando isso aconteceu. Eu tinha gravado alguns vídeos e eles me obrigaram a apagá-los. Eram agressivos, vociferavam dizendo que eu trabalhava para a polícia. Um deles mandou que eu apagasse os vídeos também na lixeira do celular, mas eu não sabia como acessar a lixeira. “Uma jornalista que não conhece a lixeira do celular? Você é uma petista a serviço da policia”. Tomou-me novamente o aparelho, apagou os vídeos na lixeira. Implorando, consegui reaver o aparelho.

Depois daquela primeira abordagem seguiram-se outras, inclusive a pior delas, em que pensei que seria linchada. Eu só vim a entender por que sempre me cercavam dois dias depois, quando alguém com acesso a grupos bolsonaristas me enviou a imagem abaixo. Eles haviam me fotografado e espalhado, nos grupos deles, a foto com a mensagem advertindo: eu era uma esquerdista que estava “fotografando os patriotas” para serem identificados.

Era fácil me reconhecer com aquele vestido preto de bolinhas brancas. Eu não sabia disso, mas comecei a evitar os grupos.

Finalmente cheguei à rampa de descida, entre o Itamaraty e o Congresso, e já havia lá uma forte barreira policial. Antes, como os vídeos depois mostraram, naquele local a PM liberou a passagem para que eles descessem ensandecidos rumo ao Supremo. Gritei que era jornalista e queria passar para trabalhar, mas um policial me apontou um fuzil dizendo “pare, senão atiro”. Gelei, lembrando os tempos do movimento estudantil na ditadura. Joguei a bolsa no chão, levantei os braços e ele, sempre apontando o fuzil, me disse para pegar a bolsa e me afastar andando de costas. Obedeci, é claro.

E foi então que vi uma multidão de verde-e-amarelo, bem compacta, subindo em direção à rodoviária, escoltada por policiais. Mais tarde eu saberia que já era o Capelli conduzindo os que foram flagrados na depredação rumo ao acampamento do QG do Exército. Lá houve aquela altercação entre Capelli e o general Henrique Dutra, chefe do Comando Militar do Planalto, que não concordava com a prisão dos golpistas.

Saberíamos depois que Dutra ligou para o general Gonçalves Dias, ainda chefe do GSI, que passou o telefone a Lula. “General, são todos criminosos e têm de ser presos!”, disse o presidente. O general respondeu: “Concordo plenamente com o senhor, mas essa é uma operação complexa, que precisa de planejamento. Até agora só lamentamos danos materiais mas, se entrarmos sem planejamento, vai morrer gente”. Lula concordou: “Isso seria uma tragédia, general. Cerque todo mundo. Não deixe ninguém sair e prenda todo mundo amanhã”. Dizem que muitos escaparam na madrugada.

Voltando às minhas peripécias na Esplanada: fui em direção ao comboio verde-e-amarelo ver o que era aquilo mas, no meio do gramado, um grupo de ativistas me fechou num círculo e começaram os xingamentos. Reexaminaram o celular mas não havia mais vídeos. Alguns me davam chutes nas panturrilhas. Eu tentava explicar que só estava tentando trabalhar, mas eles estavam muito irritados, e um deles fez a ameaça. “Vamos dar uma aula de jornalismo para ela lá atrás do Ministério da Defesa”. Estávamos em frente ao prédio da pasta. Atrás o que existe é um estacionamento mal iluminado. A noite estava caindo.

Nessa hora é que fui socorrida por uma mulher do grupo, dizendo que eu era mesmo jornalista, que ela me conhecia do Congresso, era até minha vizinha. Deixassem que ela me levaria até meu carro e faria com que eu fosse embora. Alguns discordaram, outros abriram o círculo, ela me pegou pelo braço e fomos saindo.

Ela quis saber onde estava meu carro, informei que atrás da Catedral. No caminho perguntei se ela era mesmo minha vizinha e ela esclareceu. Não, dissera aquilo para facilitar as coisas. Era funcionária do Congresso e me conhecia de lá. Mas eu devia ir logo embora antes que algo me acontecesse. Chegando ao carro, agradeci a ela, perguntei o nome mas já me esqueci.

Nessa altura Leonardo Attuch me mandava seguidas mensagens dizendo para eu sair dali, e resolvi sair mesmo. Rojões explodiam na Praça dos Três Poderes e tudo indicava que a insurreição havia sido controlada.

No dia seguinte o ministro Paulo Pimenta, mandou me chamar para uma reunião lá na Secom. Na sala já encontrei outros colegas que também haviam sido agredidos. O levantamento dava conta de 14. Alguns haviam passado coisas até piores que eu.

Um repórter do jornal O Tempo contou que estava no Senado e teve duas armas apontadas contra a cabeça. Pediu socorro à PM, que nada fez. Quem o ajudou a escapar foi um técnico da EBC. Uma fotógrafa do portal Metrópoles foi derrubada e espancada por cerca de dez homens. Um repórter da Band teve o celular destruído porque filmava os atos. Uma correspondente do The Washington Post foi agredida com chutes e teve o material roubado. Os relatos eram todos nessa linha.

A pedido do ministro, a Polícia Civil abriu um inquérito sobre ataques a jornalistas, que incluiu o roubo de todo o equipamento do fotógrafo do presidente, Ricardo Stuckert. Ele havia deixado o material no Palácio.

Prestei depoimento, como os outros. Recentemente fui chamada a ir lá assinar um termo mas não creio que tenham identificados os agressores de jornalistas.

Estes foram fatos menores diante de tudo o que aconteceu, mas contribuem para a crônica do 8 de janeiro. Tenho certeza de que todos os que estiveram ali, no meio do furacão golpista, nunca viram tanta fúria e ódio.

Há muitas coisas que ainda não sabemos sobre aquele dia, mas ainda saberemos. Todos terão que responder pelo que fizeram: não apenas os vândalos ensandecidos mas também aqueles que os comandaram ou inspiraram. Foi longa a gestação do 8 de janeiro.

É bom que Lula e os chefes dos outros poderes estejam planejando o ato de repulsa do próximo dia 8. É bom que os comandantes militares estejam lá, como dizem que estarão. Será melhor ainda se tivermos também manifestações populares, e não apenas o ato institucional. Seria bom que o 8 de janeiro fosse oficialmente definido como “dia da derrota da intentona golpista”.


Texto original em português do Brasil

Perseguição ao Padre Júlio Lancellotti visa reforçar o ódio pobres

0

A estratégia do vereador paulistano Rubinho Nunes (União Brasil), um dos fundadores Movimento Brasil Livre (MBL), nazista, de incriminar o trabalho do Padre Júlio Lancellotti na sua incansável defesa dos direitos das pessoas em situação de rua, é aprofundar o ódio contra os mais pobres para beneficiar a especulação imobiliária e justificar o genocídio das pessoas em situação de vulnerabilidade.

É a velha tática nazista de nomear um inimigo para arregimentar apoio à ideia de supremacia dos mais ricos e brancos, contra tudo o que diz respeito aos direitos humanos, direitos do trabalho, sociais e individuais.

Com essa proposta inócua de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar Organizações Não Governamentais (ONGs) e o Padre Júlio que alimentam e fornecem apoio a essa população abandonada pelo poder público municipal na capital paulista, fica evidente a proposta do ódio, da violência e do extermínio de pessoas em situação de rua e de dependentes químicos pobres.

Sem levar em consideração que são mais de 100 mil pessoas em situação de rua no estado de São Paulo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e mais de 35 mil somente na capital.

Em ano eleitoral, a intenção passa por criminalizar os defensores dos mais vulneráveis, dos direitos humanos e de uma vida digna a todas as famílias, seja de que tipo for. Junta-se a isso o lobby de grandes empresas de especulação imobiliária, numa cidade que tem pelo menos 30 mil imóveis abandonados, uma pequena parte deles ocupados por movimentos de luta por moradia. Ao contrário disso, é preciso pensar maneiras de zerar o déficit habitacional na cidade e no estado, além, de políticas de criação de empregos com carteira assinada e salário digno.

Par possibilitar às famílias manterem suas filhas e filhos na escola, sem necessidade de ajudarem no orçamento doméstico. Além de investimentos massivos em educação pública para manter as crianças e jovens na escola, tirando a possibilidade de aliciamento pelo tráfico nas periferias.

Além do que a “guerra às drogas” falhou no mundo inteiro por partir da premissa de que isso é caso de polícia e não de saúde pública. A extrema direita elege essa população vulnerável e sem voz como inimigos a serem abatidos.

Por isso, o vereador nazista usa a Cracolândia como retórica para instigar o ódio aos mais pobres, aos negros, às mulheres, aos LGBTs, aos dependentes químicos pobres. A extrema-direita não quer resolver nada, quer apenas tumultuar para favorecer o seu discurso fácil, incapaz de pensar maneiras concretas de solucionar os problemas sem matar ou violentar ninguém.

Porque essa é uma questão social complexa e somente com um amplo debate sobre a possibilidade de não haver pessoas em situação de rua e como enfrentar o tráfico de drogas. Um bom trabalho foi feito durante a gestão de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo, quando os dependentes químicos tiveram acompanhamento psicológico, assistência social e eram encaminhados ao trabalho, mesmo que os resultados sejam lentos, mostrou-se uma maneira eficaz de acabar com a Cracolândia sem exterminar vidas.

Mas o fácil discurso de ódio aos mais pobres, aos pretos e a todas pessoas vulneráveis que incomodam os brancos ricos não mede esforços em limitar o pensamento e o debate sobre o tema. Por isso, essa CPI não tem nenhum fundamento.

Em vez desse vereador gastar o seu tempo para exigir que a prefeitura tenha políticas públicas efetivas de habitação e de combate ao tráfico de drogas juntamente com o estado e o governo federal, para São Paulo não ter pessoas em situação de rua e nem a Cracolândia, ele visa achincalhar quem faz o trabalho que os governantes deveriam fazer. Porque há que se combater o tráfico com punição àqueles que lucram com o tráfico e por isso não querem o seu fim.

A repercussão dessa CPI demonstra que amplos setores da sociedade não aguentam mais a política do ódio, da violência, da discriminação. O Padre Júlio teve apoio do presidente Lula, do Papa Francisco, de diversos partidos políticos, de setores muito diferentes da sociedade, o que pode minar essa CPI sem sentido. Porque o trabalho do Padre Júlio Lancellotti tem reconhecimento nacional e mundial.


Texto em português do Brasil

A mecânica dos mercados | O sobressalto

0

Em fim de ano e em jeito de balanço, apesar das guerras e da crise política nacional, recordo a agitação que varreu o sector financeiro (particularmente o norte-americano), e a notícia do início de Maio que, confirmando que o banco norte-americano JP Morgan ia comprar activos do First Republic Bank reacendia a questão da real situação dos sistemas financeiros, e me levou a reler uma análise escrita por Michael Hudson por alturas da falência do Silicon Valley Bank, num artigo a que aludi aqui no TORNADO e que pensei agora detalhar melhor.

Porém, talvez seja mais correcto (e honesto) deixar falar o autor de obras como «J is For Junk Economics» e «Killing the Host – How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy» – onde expõe como os sectores financeiro, dos seguros e imobiliário (o grupo FIRE, sigla inglesa para “finance”, “insurance” e “real estate”) ganharam o controlo da economia global à custa do capitalismo industrial e dos governos que lhes asseguraram um estatuto fiscal favorecido que inflaciona os preços imobiliários enquanto deflaciona a economia “real” do trabalho e da produção, como os resgates salvaram os bancos mas não as economias e como as políticas de austeridade desviam riqueza e rendimento para o sector financeiro, enquanto empobrecem a classe média – e limitar-me a concluir a tradução do referido artigo:

A Mecânica do Mercado de Títulos e o seu Impacto na Crise Bancária

Por Michael Hudson – 15 de Março de 2023

O Fed assusta-se e reverte as taxas de juros

Em 14 de Março, os preços das acções e títulos dispararam. Os especuladores fizeram uma matança ao ver que o plano do governo é o de sempre: chutar o problema dos bancos para o futuro, inundar a economia com resgates (para os banqueiros, não para devedores estudantis) até ao dia das eleições em Novembro de 2024.

A grande questão é, portanto, se as taxas de juros podem voltar a um “normal” histórico sem transformar todo o sistema bancário em algo como o SVB. Se o Fed realmente aumentar as taxas de juros de volta aos níveis normais para desacelerar o crescimento dos salários, deve haver um colapso financeiro. Para evitar isso, o Fed deve criar um fluxo exponencialmente crescente de flexibilização quantitativa.

O problema subjacente é que a dívida com juros cresce exponencialmente, mas a economia segue uma curva em S e depois desce. E quando a economia desacelera – ou é deliberadamente desacelerada quando os salários do trabalho tendem a acompanhar a inflação de preços causada pelos preços monopolistas e pelas sanções anti-russas dos EUA que aumentam os preços da energia e dos alimentos, a magnitude das reivindicações financeiras na economia excede a capacidade de pagar.

Essa é a verdadeira crise financeira que a economia enfrenta e que vai além dos bancos. Toda a economia está sobrecarregada com a deflação da dívida, mesmo diante da inflação dos preços dos activos apoiada pelo Federal Reserve. Portanto, a grande questão – literalmente o “resultado final” – é como o Fed pode manobrar para sair do canto de flexibilização quantitativa de juros baixos em que converteu a economia dos EUA? Quanto mais tempo e qualquer que seja o partido no poder continue a evitar que os investidores do sector FIRE sofram perdas, mais violenta deve ser a resolução final.

Assim se conclui a leitura da situação do sector financeiro, que Michael Hudson nos transmite, à luz dos mais recentes acontecimentos. Talvez um pouco extensa, mas indispensável para quem queira perceber o que realmente acontece à nossa volta e como, com o tempo, os sectores produtivos da economia foram sendo capturados pelos interesses financeiros.

Esta é precisamente a questão que o autor há muito tempo aborda e que já no prefácio ao seu livro «J is For Junk Economics» (publicado em 2017) introduzia como uma retrospectiva à crise global de 2008 que:

  1. viu os governos dos países ocidentais salvarem os bancos e os detentores de obrigações, e não as respectivas economias nacionais, gastando biliões em resgates e “flexibilização quantitativa” para salvar os grandes credores e os especuladores a expensas da degradação das infra-estruturas públicas e privadas, dos salário e pensões, a par com o aumento da pressão para reduzir a Segurança Social;
  2. serviu de pretexto para acelerar o processo de redistribuição do rendimento e da riqueza em benefício dos mais ricos e numa clara reversão das políticas defendidas pelos economistas clássicos do século XIX;
  3. serviu de pretexto para usar a austeridade resultante como desculpa para privatizar os activos públicos e os recursos naturais que deviam servir de base tributária para a administração das funções públicas e de pretexto para forçar os governos a vender infra-estruturas públicas para pagar aos credores;
  4. as infra-estruturas públicas estão a ser usadas pelos novos proprietários para cobrarem taxas de monopólio, o que resulta na perda de serviços básicos acessíveis e empobrece ainda mais as populações.

Denunciando a situação em que a coberto do discurso hipócrita da economia do lazer e da abundância, as elites financeiras (e quem as serve) têm promovido um processo de endividamento como forma de concentrarem a riqueza através da inflação dos preços dos activos, enquanto os salários e os lucros económicos estão a ser esgotados num fluxo de pagamentos de juros que cresce exponencialmente, Michael Hudson defende a necessidade de reconstruir a economia como disciplina e assim recuperar o processo de análise e de elaboração de políticas económicas mais baseadas na realidade e ao serviço dos cidadãos.

 

A mecânica dos mercados | A crise ainda não acabou

A mecânica dos mercados | A visão curta

A mecânica dos mercados | As ligações fatais

Lula foi vitorioso em 2023 mas será mais difícil tourear o Congresso em 2024

Para um presidente de esquerda, eleito por escassa margem de votos e minoritário num Congresso amplamente conservador, Lula foi inegavelmente vitorioso em seu primeiro ano de mandato. Mesmo negociando pauta a pauta, cedendo espaços no governo, pagando pedágio com a liberação de emendas e engolindo algumas derrotas, ele conseguiu aprovar o essencial de sua agenda política. Os bons resultados econômicos coroam uma travessia que parecia mais difícil. Mas, em 2024, a relação com o Congresso promete ser mais desafiante.

Um sinal disso está sendo dado nestas últimas horas do ano, com as primeiras reações políticas (e empresariais) às medidas fiscais compensatórias anunciadas nesta quinta-feira, 28, pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Especificamente, pelo anúncio de uma medida provisória que busca contornar a perda de R$ 20 bilhões imposta pelo Congresso ao aprovar a prorrogação da desoneração da folha de pagamento. Lula vetou a lei integralmente e o Congresso derrubou o veto. A proposta de Haddad revogará a lei, substituindo a desoneração plena, para 17 setores econômicos, por uma reoneração gradual.

A gritaria está aí. Parlamentares já falam em “afronta ao Congresso” e entidades dos setores empresariais beneficiados divulgaram uma nota dura, mencionando falta de diálogo e sensibilidade, lembrando os efeitos positivos da desoneração para a geração de empregos.

Antes de assinar a MP, que parece fadada à rejeição, pode ser que Lula e Haddad reavaliem o custo político. Pode ser que paguem para ver. Essa é o primeiro conflito contratado para 2024. E na esteira dele, pode ser que o Congresso derrube também os vetos a este escandaloso PL do veneno, que mesmo com os 14 vetos, é um atentado à saúde e ao meio ambiente. E ao próprio agronegócio, que o patrocinou, pois em breve o mundo estará falando na toxidade dos grãos brasileiros.

Todos já sabem o que é a desoneração. Desde Dilma, estes setores pagam não 20% de contribuição previdenciária sobre a folha de salários, mas de 3% a 5% sobre o faturamento bruto. São calçadistas, construção civil, vestuário e confecções e… comunicações, entre outros. Não por acaso a primeira entidade que assina a nota é a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão). Ou seja, a decisão de Haddad enfrentará a ira do Congresso, dos empresários e da mídia.

As outras duas medidas compensatórias não despertaram a mesma reação. Haddad quer limitar as compensações tributárias (adiar a devolução de impostos já cobrados mas derrubados na Justiça) e cortar ao meio as vantagens concedidas a empresas aéreas e de eventos, o tal Perse. Mas isso renderá apenas a metade da perda de receita, fundamental para o cumprimento da meta de déficit fiscal zero. Ou próxima disso.

Estes são prenúncios para 2024. O que se avista é um ano político mais difícil, que exigirá cada vez mais a atuação direta de Lula na articulação política.

Costuma-se dizer que, se o governo vai bem na economia, o Congresso fica mais dócil. Já foi assim, mas os tempos mudaram. Estamos assistindo a um empoderamento crescente do Congresso, que lhe confere autonomia em relação ao desempenho do Executivo.

Não é favor algum reconhecer que o governo termina o ano colhendo excelentes resultados econômicos, desmentindo todas as previsões pessimistas. A inflação fechará dentro da meta, o PIB crescerá 3%, a bolsa está bombando, o dólar e os juros caindo, os empregos aparecendo. A percepção internacional da economia brasileira, que voltou a ser a nona do mundo, também está em alta, como demonstram as reclassificações positivas feitas pelas agências de risco.

Some-se a isso a recriação dos programas sociais que haviam sido descontinuados ou esvaziados na era Bolsonaro, iniciativas bem recebidas, como o Desenrola, e a promessa de grandes investimentos, com os projetos do PAC.

Some-se ainda a exitosa reinserção internacional do país, para a qual contribuíram tanto a diplomacia profissional como a diplomacia presidencial de Lula. O Brasil voltou a ser levado a sério nos fóruns internacionais, está fazendo bonito na questão ambiental e climática, reconstruiu as relações bilaterais e multinacionais relevantes e até pagou nossa vexaminosa dívida para com as organizações multilaterais.

Apesar de tudo isso, a popularidade de Lula não cresce de forma condizente com os resultados do governo. Isso acontece, a meu ver, porque a polarização calcificou-se. Os bons resultados do governo não conseguem dissolver a resistência dos que foram capturados pela extrema-direita, que continua ativa e viva. Quando se pergunta a um bolsonarista o que está achando da queda dos preços dos alimentos, ele é capaz de dizer que isso ainda é consequência do desgoverno de Bolsonaro, ou que tinha que acontecer mesmo, sem explicar por que.

Apesar de todos os bons resultados, o Congresso continuará sendo uma pedreira para Lula. Não se trata de mera hostilidade da maioria conservadora ao atual governo que, mesmo sendo amplo, tem DNA de esquerda. Trata-se do empoderamento estratégico iniciado há alguns anos, através do controle do Orçamento. Sob Dilma, o Legislativo tornou impositivas (de liberação obrigatória) as emendas individuais. Com Temer, tornaram impositivas as de bancada. Com Bolsonaro, criaram o orçamento secreto. Lula o desmanchou com a ajuda do STF mas agora turbinaram os valores (que chegaram a R$ 53 bilhões para 2024) e fixaram o calendário para empenho e liberação.

As emendas impositivas (soma das individuais com as de bancada), passaram de R$ 9,7 bilhões em 2015 para R$ 28,9 bilhões em 2023. Um crescimento de 197%. O nome disso é poder. Poder sobre os recursos públicos. Apropriação de prerrogativas executivas do presidente pelo Congresso, a parlamentarização do sistema presidencialista. Como sabido, só se pode mudar o sistema de governo através de novo plebiscito, mas o Congresso vem passando o trator sobre seguidos governos.

Em 2024, ano eleitoral, a fome do Congresso não vai diminuir, pelo contrário. Lula conta com a banda direita, o Centrão, em algumas matérias. Em outras, essa banda impõe sua pauta, expressando seus outros alinhamentos. Principalmente, o compromisso com o agronegócio, que converte seu poder econômico em força política, através da poderosa Frente Parlamentar da Agricultura, a FPA, que conta com mais de 300 deputados.

Por que o agro tem tanto apoio no Congresso? Essa é uma pergunta que precisamos nos fazer. O que ganham todos os que se batem tão fortemente em defesa do agro? Mas isso é outro assunto.

A conclusão aqui é que, na política, 2024 deve ser mais difícil para Lula. Ele terá que continuar negociando caso a caso, terá que colocar a mão na massa, atuando pessoalmente, engolirá alguns sapos e precisará reforçar a articulação política. Mas de olho na rua. Sua popularidade (derivada da eficiência do governo) é que poderá mitigar um pouco a fúria do touro. E um bom desempenho da frente de esquerda nas eleições também ajudará.

Lula é criticado à esquerda, dentro e fora do PT, pelas concessões que faz, pela condescendência e paciência com este Congresso voraz. Mas, no lugar dele, o que fariam os críticos? Governo minoritário não cutuca a onça com vara curta.


Texto original em português do Brasil

Morreu António Tavares, dirigente associativo angolano e activista por Timor

0

No dia de Natal morreu em Luanda um dos meus melhores amigos de sempre. Aos 60 anos de idade, o infortúnio bateu à porta de António Tavares. Para mim morreu um irmão, um grande amigo, um camarada defensor dos direitos humanos e de causas humanitárias, sociais e políticas.

António da Conceição Tavares, natural de Luanda, nasceu a 14 de Março de 1963. No final da década de 80 viajou para Lisboa para frequentar a licenciatura em Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Após a conclusão do curso de graduação em 1992, decidindo prosseguir estudos, concluiu em 1995 o curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Económico e Social no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) e um curso de língua e cultura espanhola na Escuela Democrática de Madrid.

Como estava a viver em Portugal, em contacto com os imigrantes africanos, com a comunidade cigana e com os refugiados de Timor-Leste fugidos da invasão Indonésia, António Tavares rapidamente se apercebeu dos imensos problemas que afligiam os imigrantes e as minorias étnicas tendo decidido abraçar o associativismo em defesa das causas dos mais pobres e vulneráveis.

 

Defensor dos imigrantes africanos residentes em Portugal

Em Lisboa, António Tavares fundou a SOS – Associação de Defesa dos Angolanos com o intuito de desenvolver políticas de integração das comunidades imigrantes e das minorias étnicas, tendo sido Presidente e membro da Direcção durante doze anos.

No final da década de 80, eu encontrava-me em Portugal para prosseguir estudos superiores. No âmbito das minhas actividades de cidadania aceitei ser membro do Conselho Municipal das Comunidades Imigrantes e das Minorias Étnicas da Câmara Municipal de Lisboa, em representação da Comunidade dos Refugiados de Timor, e também na Câmara Municipal da Amadora, em representação da Liga dos Amigos de Timor.

Esta circunstância de estar em Portugal envolvido em actividades associativas permitiu-me conhecer bem o saudoso António Tavares e acompanhar de perto todo o seu percurso e os valores que defendia em prol de associações de imigrantes.

Tenho na minha memória muitas acções e actividades realizadas por António Tavares com várias associações e entidades, nomeadamente com a Associação Unidos de Cabo Verde, dirigida na altura por Mário de Andrade (já falecido) e Maria João, com a Associação de Cabo Verde dirigida por Celeste Correia, com uma Associação de São Tomé e Príncipe, dirigida por Alberto Neto, com associações da Guiné-Bissau, com destaque para a Associação dirigida por Fernando Ká (já falecido), associações do Brasil e de Moçambique, entre tantas outras.

O trabalho de António Tavares implicou igualmente o envolvimento de associações portuguesas que apoiavam a sua luta, como o SOS Racismo, na altura dirigido por José Falcão, a Associação Olho Vivo, cuja Presidente era Flora Silva, a Frente Anti-Racista, cujo principal dirigente era António Correia e a Associação Moinho da Juventude para citar estas que me estão na memória.

No quadro deste movimento associativo, na busca da unidade entre todos os imigrantes e outras minorias, de forma sábia e estratégica, António Tavares organizou a criação da FACL – Federação das Associações da Comunidade Lusófona e venceu as eleições para ser o Representante das Associações das Comunidades Imigrantes na Comissão Nacional Extraordinária de Legalização de Imigrantes afecta ao Ministério da Administração Interna de Portugal, cargo que ocupou durante dez anos.

Em termos profissionais, ainda em Portugal, António Tavares foi Oficial de Justiça, tendo exercido funções na antiga 3ª Conservatória de Registo Civil durante três anos, no 28º Cartório Notarial de Lisboa durante cinco anos e na Conservatória do Registo Predial por um período de dez anos.

Posteriormente, atendendo ao seu estatuto luso-angolano, exerceu outras ocupações, como Deputado Municipal na Câmara de Lisboa, durante sete anos, Assessor do Secretário de Estado Adjunto do Ministério da Administração Interna, durante nove anos e Assessor da Vereadora da Acção Social da Câmara Municipal de Lisboa, com o pelouro das Comunidades Imigrantes e das Minorias Étnicas.

Enquanto Assessor e Deputado, António Tavares teve um papel decisivo no apoio às associações de imigrantes, em especial na atribuição de espaços físicos para a instalação das sedes da Associação Amigos do Pelundo, da Associação Amigos do Príncipe e da Associação de Defesa dos Angolanos, entre outras.

 

Activista por Timor-Leste e peticionário nas Nações Unidas

O meu querido amigo António Tavares, sempre incansável e solidário, disponibilizou-se para defender a causa de Timor-Leste.

Em Lisboa, enquanto activista por Timor-Leste, apoiou a organização de várias manifestações realizadas em Lisboa, no Rossio e na Praça do Comércio, para denunciar e condenar o massacre do Cemitério de Sta. Cruz em 12 de Novembro de 1991.

Em 1995 e em 1996 acompanhou-me a Nova Iorque e apresentou petições a favor da autodeterminação e independência do Povo de Timor-Leste no Conselho Económico das Nações Unidas, concretamente no Comité de Descolonização das Nações Unidas. No mesmo período, António Tavares também foi comigo a Washington, D.C. para sensibilizar políticos norte americanos para a causa de Timor-Leste.

António Tavares (Esqª) com observadores em Timor-Leste (Arquivo PST, 1999)

Como activista por Timor-Leste, em nome da Associação de Defesa dos Angolanos, António Tavares tomou uma série de posições públicas a favor da libertação de Avelino Coelho, actual Presidente do Partido Socialista de Timor (PST), quando esteve refugiado na Embaixada da Áustria em Jakarta durante mais de um ano, no final da década de 90. Uma das acções de grande importância foi ser um dos subscritores das cinco mil assinaturas entregues ao Embaixador Carlos Santos, no Escritório das Nações Unidas em Lisboa.

Na qualidade de Observador Internacional, a convite do Partido Socialista de Timor (PST), esteve presente no Referendo realizado em 30 de Agosto de 1999. Em Díli, após os ataques das milícias pró-indonésias, António Tavares foi perseguido pelas milícias, tendo conseguido escapar a muito custo com o apoio dos militantes do PST e de um australiano, evacuado para Darwin.

 

Sempre demonstrou o seu grau de elevada educação e humanismo

António Tavares

António Tavares, querendo fazer valer a sua experiência profissional granjeada em Portugal, nomeadamente na área do registo e notariado, em Luanda, foi consultor da Empresa Merap Consulting. Mais tarde, até Dezembro de 2021, foi Director Geral da Empresa Mindmap Consulting. Posteriormente desenvolveu actividades de carácter empresarial na área do Trading, Desenvolvimento de Tecnologias e no Registo e Notariado.

António Tavares, no dia 24 de Dezembro de 2023, quando se encontrava no aeroporto de Luanda para viajar para Portugal pois a família aguardava-o para celebrar o Natal, sentiu-se mal e foi levado para o hospital onde acabou por falecer, provavelmente vítima de um AVC hemorrágico.

Nas causas mais nobres, na defesa das comunidades imigrantes e das minorias étnicas, onde se incluía a comunidade timorense e a cigana residentes em Portugal, António Tavares fez-se sempre presente.

No seu trato com todas as pessoas, António Tavares sempre demonstrou o seu grau de elevada educação e humanismo.

A morte prematura de Antoninho, como era carinhosamente tratado pelos mais próximos, deixou muita tristeza, consternação, um vazio difícil de ser avaliado.

Registei mensagens de muita tristeza e consternação nas  redes sociais e foi-me solicitado pelo Presidente do PST que informasse a viúva e a família sobre o sentido de imensa tristeza em relação ao desaparecimento físico de António Tavares.

Grande amigo, irmão e camarada, decidiste partir. Resolvi escrever e partilhar o teu percurso de vida para que ele seja conhecido e respeitado, em Angola, em Portugal, em Timor-Leste, em outros lugares, por onde passaste e fizeste obra digna.

Com um nível de tristeza que só eu posso calcular, expresso as minhas mais sentidas condolências à viúva, Nelinha, minha querida amiga, aos filhos, Wilson e Rúben, e à restante família que conheci tão bem.

António Tavares, descansa em paz!

Recordando ‘o caso da capela do rato no supremo tribunal administrativo’

Passando mais um ano da repressão da vigília pela Paz efectuada na Capela do Rato de 1972 para 1973 proponho-me tratar aqui a reação jurídica dos funcionários públicos então demitidos com invocação do DL 25 317, de 13 de Maio de 1935, o qual com a L 2021, de 21 de Maio de 1935, e o DL 27 003, de 14 de Setembro de 1936, integrou o arsenal utilizado pelo regime para excluir da função pública pessoas em que não confiava ou para lhes impedir acesso àquela, como mostram Fernando Rosas e Cristina Luísa Sizifredo em Estado Novo e Universidade: A Perseguição aos Professores publicado em 2013(i).

Recorde-se a redacção do DL 25 317 (Manda aposentar, reformar ou demitir os funcionários ou empregados, civis ou militares, que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios fundamentais ou não dêem garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado):

Artigo 1º Os funcionários ou empregados, civis ou militares, que tenham revelado ou revelem, espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política, ou não dêem garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado, serão aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos em caso contrário.

Art 2º Os indivíduos que se encontrarem nas condições do artigo anterior não poderão ser nomeados ou contratados para quaisquer cargos públicos nem admitidos a concurso para o provimento neles.

  • único. Quando o provimento se fizer mediante concurso de provas públicas, estas não poderão começar sem que ao respectivo Ministro seja dado conhecimento da lista de candidatos com a antecedência de dez dias.

Artº 3º Não poderão ser admitidos pelas escolas que somente habilitem para o exercício de funções públicas os candidatos ou alunos abrangidos pelas disposições dos artigos anteriores.

  • único. Os candidatos ou alunos que hajam sido admitidos nas escolas a que este artigo se refere e que se encontrem nas condições previstas no artigo 1º poderão a todo o tempo ser excluídos.

Artº 4º A demissão, reforma ou aposentação e a exclusão dos concursos ou escolas é sempre da competência do Conselho de Ministros.

  • único. Das decisões do Conselho de Ministros só há recurso para o próprio Conselho, o qual será interposto no prazo de oito dias, por simples requerimento, que poderá ser instruído com quaisquer documentos.

O fundamento na Constituição recentemente aprovada é um tanto forçado e de algum modo conjuntural, invocando resistências que ainda persistem, e faz-se apelo ao artigo 22º da referida Constituição para defender que “os funcionários públicos estão ao serviço da colectividade e não de qualquer partido ou organização de interesses particulares, incumbindo-lhes acatar e fazer respeitar a autoridade do Estado” que fora já invocada no Estatuto do Trabalho Nacional para proibir a sindicalização de funcionários públicos.

O DL 27 003 (Torna obrigatória a declaração de estar integrado na ordem social estabelecida pela Constituição de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas, para admissão a concurso, nomeação, assalariamento e noutras circunstâncias, com relação aos lugares de Estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativas, e ainda para os candidatos à frequência de escolas que preparem exclusivamente para o funcionalismo e para outros) completa o cerco legislativo, responsabilizando também os dirigentes dos serviços:

Artº 4º Os directores e chefes de serviços serão demitidos, reformados ou aposentados sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente.

e punindo as próprias empresas privadas:

Artº 6º Caducarão os financiamentos feitos por organismos do Estado às empresas logo que se verifique terem estas ao seu serviço, e com conhecimento dos administradores, indivíduos que professem ideias subversivas.

Preste-se atenção a que não se faz particular exigência de fundamentação ao Governo em relação às decisões tomadas, por exemplo em relação à formação da convicção de que as suas vítimas não dão garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado, e a que não há possibilidade de recurso contencioso, isto é, para os Tribunais, mas apenas para o próprio Conselho de Ministros, ou seja, diríamos hoje que apenas se admite uma reclamação para o próprio órgão.

Estas disposições são simultaneamente tão amplas e tão vagas que me fazem lembrar os artigos 39º, nº 1, 40º e 41º do DL 15 465, de 14 de Maio de 1928 (Reforma Orçamental) também da mão de Salazar, que faziam cessar ope legis o vínculo de e o pagamento a funcionários em situações imprecisamente identificadas (com responsabilização dos chefes que continuassem a mandar processar os pagamentos) sem que exista informação precisa do efectivo impacto que tiveram.

Basicamente, visavam, parece-me, infundir temor, e tê-lo-ão conseguido.

No caso das disposições do DL 25 317, para que não houvesse dúvidas e a título exemplar, foi três dias depois da publicação do diploma publicada uma lista de 33 funcionários afastados do serviço dos quais apenas 5 eram professores do ensino superior(ii). Só 12 anos depois, decorrida já a II Guerra Mundial, mas tendo o regime ficado abalado com as exigências de democratização, foram novamente publicadas – em 18 de Junho de 1947 – listas de abrangidos pelo DL 25 317, também em número de 31 sendo 9 de oficiais, que estariam comprometidos num movimento que havia sido neutralizado pelo regime e que se anunciava que iriam também responder na justiça militar, e 22 professores e assistentes universitários, incluindo numerosos catedráticos(iii).

Rosas e Sizifredo, num esforço notável, identificam no seu livro diversos outros casos de professores e investigadores afastados com invocação do DL 25 317, mas os únicos exemplos de deliberação de Conselho de Ministros de Salazar atingindo simultaneamente dezenas de funcionários públicos qualificados com ampla publicitação são os de 1935 e de 1947, que mostram que o Poder Político, sentindo-se em causa, optou por retaliar e dar larga publicidade a essa retaliação.

Marcelo que à data era Presidente da Comissão Executiva da União Nacional enviou então uma carta a Salazar, num episódio que descreve em Minhas Memórias de Salazar, com algum eco no Vol IV do Salazar de Franco Nogueira:

Sou professor, e professor de Direito. Como professor e julgador reivindico para a função aquele mínimo de garantias que permitam a independência do ensino e da apreciação dos examinandos. Como jurista, considero fundamental o princípio – só excepcionalmente derrogável – de que ninguém pode ser condenado sem ser ouvido.

A recente separação de professores afetou estes princípios basilares da minha consciência jurídica. E logo no caso concreto essa condenação sem defesa me pôs indirectamente em causa no caso do Prof. Celestino da Costa.

Segredam-me que na origem da sua condenação está a actividade desenvolvida por ele como presidente do Instituto de Alta Cultura de 1936 a 1940. Dessa direcção fiz parte…cabendo-me uma quota de responsabilidade, ou quase, tão grande como a de Celestino da Costa.

Celestino da Costa, professor catedrático de Medicina, e outros três professores da Universidade de Lisboa veriam na altura a sua reclamação para o Conselho de Ministros atendida. Não ficamos elucidados sobre se a reacção de Marcelo Caetano, que viria a ser mais tarde libertado de responsabilidades na União Nacional, teria sido decisiva.

Marcelo continuará a escrever sobre os direitos dos administrados tendo sido publicado em 1969 pelo Max-Planck-Institut um conjunto de 31 relatórios nacionais sobre a protecção jurisdicional contra o executivo dos quais o português era assinado por ele(iv).

E na Revisão Constitucional de 1971 fez inserir no Artigo 8º da Constituição Política da República Portuguesa um novo direito, o 21º “Haver recurso contencioso dos actos administrativos definitivos e executórios que sejam arguidos de ilegalidade”.

Todavia, 25 anos depois da perseguição de Salazar aos Professores de 1947, Marcelo Caetano, agora ele próprio Presidente do Conselho de Ministros, torna-se responsável pela perseguição, com invocação também do DL 25 317, aos Católicos do Rato, que vem publicada desta vez apenas na II Série do Diário do Governo, em Suplemento ao nº 11 de 13 de Janeiro, o que, ao contrário do que sucede com as listas de 1935 e de 1947, ainda hoje dificulta a sua consulta(v), daí que seja necessário publicar aqui este:

Quadro de Honra

Carlos Eduardo Machado do Sangreman Proença, terceiro – oficial contratado além do quadro do Instituto Nacional de Estatística(vi)

Doutor Francisco José Cruz Pereira de Moura, professor auxiliar do Instituto Superior de Economia(vii)

José Augusto Pereira Neto, conselheiro de orientação profissional no Serviço Nacional de Emprego

Ludovina Augusta de Rodrigo Esteves, auxiliar na Comissão de Acção Social nos Bairros Municipais, Lisboa

Luíz Manuel Vítor dos Santos Moita, técnico contratado do Ministério da Educação Nacional, exercendo o lugar de secretário permanente da Comissão para o Estudo da Educação e Sexualidade

Maria Gabriela Figueiredo Ferreira, assistente social, tarefeira dos serviços de saúde escolar no Centro de Saúde Escolar, Instituto de Acção Social Escolar, Ministério da Educação Nacional

Maria Isabel Rodrigues, enfermeira de saúde pública, colocada no Centro de Saúde de Sintra, Ministério da Saúde e Assistência

Maria Luísa Pacheco da Silva Vieira Pereira, visitadora escolar no Centro de Saúde Escolar, Instituto de Acção Social Escolar, Ministério da Educação Nacional

Maria Regina Líbano dos Santos, segundo-oficial da Câmara Municipal de Lisboa

Maria do Rosário de Sousa Leal de Oliveira Moita, técnica da Direcção-Geral dos serviços florestais do Estado, da Agricultura,

Maria Teresa Abrantes Pereira, técnica de serviço social na Direcção-Geral de Assistência Social

Teresa Filomena Sarmento Abrantes Saraiva, professora eventual do Liceu de Sintra

Também os cinco advogados que colocaram a acção no Supremo Tribunal Administrativo merecem:

Quadro de Honra

Francisco Salgado Zenha
Francisco de Sousa Tavares
Jorge Sampaio
José Vasconcelos Abreu
José Vera Jardim

Repare-se que salvo Francisco Pereira de Moura e, talvez Luís Moita, os atingidos são, passe o termo, pequenos funcionários, parte deles com vínculo precário e que facilmente poderiam ter sido dispensados individualmente, e que foram englobados num ritual persecutório não utilizado desde há 25 anos com a mesma finalidade de infundir temor.

Francisco Pereira de Moura era aliás um dos três professores do Instituto Superior de Economia (ISE) cuja nomeação como professor catedrático por convite ministerial havia sido proposta pelo Conselho Escolar e já havia sido despachada favoravelmente pelo então Ministro da Educação Veiga Simão. Com a deliberação adoptada pelo Conselho de Ministros, foram apenas publicadas no Diário do Governo as nomeações de Gonçalves de Proença, que viria a ser o último Director do Instituto antes do 25 de Abril e de Luís dos Santos Fernandes. A intervenção da polícia na capela do Rato e a detenção de alguns “universitários” e “colegas” determinara de imediato uma reacção de personalidades francesas encimada pelo insuspeito François Perroux e onde se incluía o nome ainda pouco conhecido de Jacques Delors, em exposição enviada a Marcelo Caetano. Mais tarde Richard Eckaus, visando especificamente a situação de Pereira de Moura, transmite a Veiga Simão uma tomada de posição de professores da Universidade de Harvard e do MIT em que o primeiro nome é o do Nobel Kenneth Arrow. O Conselho Escolar do ISE continuou a pronunciar-se sobre o caso. Os assistentes de Pereira de Moura recusam-se a substitui-lo e os alunos recusam-se a assistir às aulas dos dois docentes que aceitam leccionar a disciplina, os quais serão saneados no pós 25 de Abril. Com a Revolução, Francisco Pereira de Moura viria a ser reintegrado como Catedrático(viii).

Os advogados(ix) centram o seu recurso no argumento de que os funcionários demitidos não foram efectivamente ouvidos e aqui baseiam-se amplamente no ensino de Marcelo Caetano, observando “Pena é que, como tantas vezes acontece no nosso país, o direito docente nem sempre corresponda ao direito governamental …”, e na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. Mas sustentam também ser o DL 25 317 “digno da Santa Inquisição”, materialmente inconstitucional face aos princípios consignados na Constituição de 1933: “Não há que se saiba, na nossa organização jurídica, nenhum preceito que obrigue os funcionários públicos a pensar do mesmo modo que os governantes”. Quanto à referência da Constituição aos “princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do pais” diz inequivocamente respeito à Igreja Católica: como poderiam os recorrentes ser punidos por responder à exortação do Papa, reflectindo em conjunto sobre a Paz? O Governo é que se colocou fora da lei: “Se um governo, ao abrigo de um decreto iníquo e inconstitucional, não respeita os princípios superiores da Constituição, ou seja da organização do Estado, parece que é ele que é desleal para com o Estado”. Por cautela, sustentam que face à recente alteração constitucional, que garantia o recurso contencioso de todas as decisões, estaria revogada tacitamente a parte do DL 25 317 que só admitia o recurso para o próprio Conselho de Ministros. Neste particular, contudo, a comunicação do Conselho de Ministros tinha omitido o “só”.

Carta de Richard Eckaus

Regressando ao trabalho de Rosas e Sizifredo referem estes, a propósito de Pereira de Moura: “Preso pela polícia de choque que invade a capela é exonerado compulsivamente de funcionário público e professor em Janeiro de 1973”. Os académicos ainda hoje têm dificuldade em ver a Universidade como parte do Estado, em sentido amplo, e os professores como funcionários públicos… No entanto, numa época em que não existiam boletins de voto mas listas em que figuravam o nome e a profissão dos candidatos e que os eleitores deviam depositar nas urnas, a lista da CDE de Lisboa continha FRANCISCO JOSÉ CRUZ PEREIRA DE MOURA, FUNCIONÁRIO PÚBLICO. Quem sabe se subliminarmente esta “provocação” não terá influído na decisão insana de aplicar o diploma de 1935 aos católicos de 1973.

 

Notas

(i) Tinta da China. Segundo os autores, versão pontualmente corrigida e ampliada com novas informações da brochura A Depuração Política do Corpo Docente das Universidades Portuguesas durante o Estado Novo (1933 – 1974) editada no ano anterior pela comissão organizadora das sessões públicas de homenagem das Universidades de Lisboa, Técnica de Lisboa, Coimbra e Porto aos docentes e investigadores demitidos por razões políticas, na sequência de iniciativa da Fundação Pulido Valente, da Fundação Mário Soares, do IHC, da FCSH da UNL e do movimento cívico Não Apaguem a Memória.

(ii) Um dos quais era o General Norton de Matos, enquanto Professor do Instituto Superior Técnico. A lista está publicada na I Série do D.G. de 16-5-1935.

(iii) A lista, ou melhor as listas, sugerindo, que com vista a um maior intimidação, se juntaram retaliações originadas por diversos incidentes, está publicada na I Série do D.G. de 18-06-1947.

(iv) Uma notícia sobre esta publicação pode ser encontrada na revista do Instituto Internacional de Ciências Administrativas: IRAS, June 1970, 36 (2), p.183.

(v) O artigo 78º da petição em que os advogados impugnam a deliberação que atingiu os seus constituintes refere-se ironicamente a esta publicação apenas na II Série.

(vi) Também contratado pelo Instituto Superior de Economia como Monitor, do que o Conselho de Ministros parece não se ter apercebido.

(vii) E não “professor catedrático do ISCEF” como dizem Rosas e Sizifredo, uma vez que com o DL 520/72 o ISCEF passara a ISE.

(viii) Carlos Sangreman Proença, entretanto reintegrado no INE, foi também recontratado pelo ISE, agora como assistente convidado.

(ix) Referem no articulado “Um dos funcionários demitidos não se associa a este recurso por motivos de ausência no estrangeiro”. Tratar-se-á de Maria Teresa Abrantes Pereira.

O renascimento do Sol

A vida, tal como a concebemos, gira à volta do Sol, e é por isso natural que a data em que, no hemisfério Norte, ele inicia a sua maior presença diária no horizonte, seja a referência escolhida para a celebração do aparecimento da vida.

Para os Yazidi, religião cuja origem é mais antiga do que qualquer das religiões tidas por abraâmicas, e que alguns Cristãos do Oriente apontam como a que inspirou a celebração do nascimento de Cristo, o solstício é celebrado na sexta-feira que o precede, ou seja, este ano a 15 de dezembro, sendo o templo de Lalish, o centro espiritual da religião, o mais importante local onde ainda se fazem as celebrações.

Que a data de 25 de dezembro escolhida pelo cristianismo para celebrar o nascimento de Cristo se tenha inspirado na Saturnália romana, como é tido por certo entre nós, ou no nascimento de Malak Tawis, ou seja o Pavão, principal arcanjo entre os Yazidi, é menos importante do que o que o Sol representa para a vida e o sentimento de poder esperar mais luz em cada dia que se sucede.

Neste novo renascimento do Sol desejo à equipa que manteve até hoje o Tornado aberto bem como aos seu leitores e colaboradores muita vida plena das felicidades que ela nos pode trazer.

Feliz Natal para todos!

A mecânica dos mercados | As ligações fatais

0

Em fim de ano e em jeito de balanço, apesar das guerras e da crise política nacional, recordo a agitação que varreu o sector financeiro (particularmente o norte-americano), e a notícia do início de Maio que, confirmando que o banco norte-americano JP Morgan ia comprar activos do First Republic Bank reacendia a questão da real situação dos sistemas financeiros, e me levou a reler uma análise escrita por Michael Hudson por alturas da falência do Silicon Valley Bank, num artigo a que aludi aqui no TORNADO e que pensei agora detalhar melhor.

Porém, talvez seja mais correcto (e honesto) deixar falar o autor de obras como «J is For Junk Economics» e «Killing the Host – How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy» – onde expõe como os sectores financeiro, dos seguros e imobiliário (o grupo FIRE, sigla inglesa para “finance”, “insurance” e “real estate”) ganharam o controlo da economia global à custa do capitalismo industrial e dos governos que lhes asseguraram um estatuto fiscal favorecido que inflaciona os preços imobiliários enquanto deflaciona a economia “real” do trabalho e da produção, como os resgates salvaram os bancos mas não as economias e como as políticas de austeridade desviam riqueza e rendimento para o sector financeiro, enquanto empobrecem a classe média – e limitar-me a continuar a tradução do referido artigo:

A Mecânica do Mercado de Títulos e o seu Impacto na Crise Bancária

Por Michael Hudson – 15 de Março de 2023

O encobrimento enganoso do presidente Biden

O presidente Biden está a tentar confundir os eleitores, garantindo-lhes que o “resgate” de depositantes ricos do SVB sem seguro não é um resgate, mas é claro que é um resgate. O que ele quis dizer foi que os accionistas do banco não foram socorridos, mas os seus grandes depositantes foram salvos de perder um único centavo, apesar do facto de não beneficiarem de qualquer garantia e, de facto, terem conversado entre si e decidido abandonar o barco e causar o colapso do banco.

O que Biden realmente quis dizer é que este não é um resgate do contribuinte, não envolve criação de dinheiro ou déficit orçamental, assim como os 9 biliões de dólares do Fed em Quantitative Easing para os bancos desde 2008 foram criação de dinheiro ou aumentaram o déficit orçamental. É um exercício de balanço – tecnicamente uma espécie de “swap” com compensações de bom crédito do Federal Reserve por títulos bancários “ruins” dados como garantia – seguramente muito acima dos preços actuais de mercado. Foi justamente isso que “resgatou” os bancos depois de 2009. O crédito federal foi criado sem tributação.

A inerente visão de túnel do sistema bancário

Pode-se citar a rainha Isabel II e perguntar: “Ninguém previu isso?” Onde estava o Banco Federal de Crédito Imobiliário que deveria regulamentar o SVB? Onde estavam os inspectores do Federal Reserve?

Para responder a isso, deve-se olhar para quem são os reguladores e os inspectores do banco. Eles são examinados pelos próprios bancos, escolhidos por negarem que haja qualquer problema inerentemente estrutural no nosso sistema financeiro. Eles são “verdadeiros crentes” de que os mercados financeiros estão a autocorrigir-se por “estabilizadores automáticos” e “bom senso”.

A corrupção desreguladora desempenhou um papel na selecção cuidadosa de tais reguladores e inspectores com visão de túnel. O SVB era supervisionado pelo Federal Home Loan Bank (FHLB). O FHLB é conhecido pela captura regulatória pelos bancos que optam por operar sob a sua supervisão. No entanto, o negócio do SVB não é o crédito imobiliário, mas sim o do empréstimo para empresas de gestão de patrimónios de alta tecnologia preparadas para IPOs (Nota do tradutor: IPO ou Initial Public Offering é uma oferta pública inicial ou de lançamento de acções, uma oferta pública na qual as acções de uma empresa são vendidas a investidores institucionais e a investidores privados) – para serem emitidas a preços altos, faladas e, em seguida, muitas vezes deixadas cair num jogo de insuflar e largar. Funcionários bancários ou inspectores que reconhecem esse problema são desqualificados do emprego por serem “sobre qualificados”.

Outra consideração política é que o Silicon Valley é um reduto do Partido Democrata e uma rica fonte de financiamento de campanha. A administração Biden não iria matar a galinha dos ovos de ouro das contribuições de campanha. Claro que iria socorrer o banco e os seus clientes privados. O sector financeiro é o núcleo de apoio do Partido Democrata e a liderança do partido é leal aos seus apoiantes. Como o presidente Obama disse aos banqueiros que temiam que ele cumprisse as suas promessas de campanha de amortizar as dívidas hipotecárias para avaliações de mercado realistas, a fim de permitir que os clientes de hipotecas lixo explorados permanecessem nas suas casas: “Sou o único entre vocês e a multidão com os forcados”, ou seja, a sua caracterização dos eleitores que acreditaram no seu discurso de “esperança e mudança”.

Assim continua a apreciação de Michael Hudson sobre o sector financeiro e as suas ligações ao poder regulatório e político. Pouco abonatória, mas clara, precisa e necessária para quem queira perceber o que realmente acontece à nossa volta.

 

A mecânica dos mercados | A crise ainda não acabou

A mecânica dos mercados | A visão curta

A mecânica dos mercados | O sobressalto

O que tem a ver a produção saudável de alimentos com a divisão do trabalho doméstico?

Bela Gil explica essa conotação em seu livro, recém-lançado, Quem Vai Fazer Essa Comida? – Mulheres, Trabalho Doméstico e Alimentação Saudável, da Editora Elefante. A autora defende a valorização do trabalho doméstico e a produção agroecológica dos alimentos como uma das formas de uma vida mais saudável e de se combater a discriminação e a violência de gênero.

Ela cita o livro O Lado Invisível da Economia: Uma Visão Feminista, de Katrine Marçal, para quem “assim como existe um ‘segundo sexo’, existe uma ‘segunda economia’”. A sociedade não vê como uma questão de trabalho quem faz a comida, quem cuida dos filhos e da casa. Mas, para Bela, fortemente baseada na filósofa Silvia Federici, o trabalho doméstico, que não é remunerado, é um dos principais pilares de sustentação do capitalismo, que explora essa mão de obra, quase como um trabalho escravo e lucra muito com isso.

Outro ponto fundamental do livro é sobre o agronegócio com uma produção altamente mecanizada, portanto, com poucos empregos, para o mercado global, ou seja, para a exportação; e essa transformação dos alimentos em commodities, é vista apenas como mercadoria para gerar lucro, o que explica por que um país com extensas terras agricultáveis como o Brasil tem milhares de pessoas passando fome. Assim é o capitalismo.

O livro destaca a forma adotada pelo capitalismo para catalisar a chamada “generosidade feminina” e explorar as mulheres no trabalho doméstico, em ligação com o campo, onde a terra seria a mulher. A música O Cio da Terra, de Chico Buarque e Milton Nascimento, ilustra tem essa temática. Abaixo interpretada por Pena Branca & Xavantinho

Vânia Marques Pinto, secretária de Política Agrícola e Agrária da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), defende a valorização da agricultura familiar e a reforma agrária como formas de fomentar a produção de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos.

Ela concorda com Bela sobre a necessidade de “educar as pessoas para consumir alimentos in natura”, mas para isso “é necessário uma série de políticas públicas e financiamentos para que esse alimento possa chegar à mesa das brasileiras e brasileiros”, porque “os alimentos ultraprocessados são muito mais baratos”. E essa reforma agrária deve “contemplar as trabalhadoras e trabalhadores do campo”.

De acordo com Vânia, a chamada Revolução Verde, “a partir da metade do século 20, ampliou a produção, introduzindo tecnologias duradouras, como os transgênicos, mas também trouxe desafios como o uso excessivo de agrotóxicos”. Coisa que Bela Gil critica de maneira incessante, ao defender que a comida seja preparada em casa ou que as pessoas tenham condições de comer em restaurantes que façam comida de verdade.

Bela traça um panorama histórico de como o trabalho doméstico recaiu e recai quase totalmente sobre a mulher, e de como o capitalismo reciclou e se apoderou desse trabalho não remunerado para alavancar a concentração de riquezas e, por isso, novamente com base em Silvia Federici, ela defende a remuneração do trabalho doméstico, além de uma divisão equânime desse trabalho entre os sexos.

A chef de cozinha defende também a importância de cozinhar e que isso seja feito tanto pela mulher quanto pelo homem. Mas para isso acontecer é necessário haver tempo, o que leva à necessidade de redução da jornada de trabalho, maior tempo de licença maternidade e de paternidade, uma reforma agrária que reforce a produção agroecológica, portanto com preservação ambiental, e também uma ampla reforma urbana, onde a locomoção das pessoas demande menos tempo, principalmente nas grandes cidades.
Por isso, Vânia reforça a importância de uma análise do ponto de vista da classe trabalhadora sobre os impactos da mecanização no campo, que, apesar de aumentar a produtividade, contribui para o desemprego estrutural e a substituição gradual dos trabalhadores do campo. “A mecanização altera a dinâmica de produção, interfere na mão de obra, modifica as relações campo-cidade e contribui para o desemprego estrutural”, afirma ela.

Isso porque “A narrativa do campo brasileiro não é única; há a disputa entre a agricultura familiar, que vê o campo como um espaço de vida, e o agronegócio, que o considera apenas um lugar de negócios”, argumenta. Um ponto importante destacado pela sindicalista trata-se de um intenso combate ao trabalho escravo e valorização do trabalho no campo.

Bela enfatiza a necessidade de criação de políticas públicas que possibilitem o barateamento dos alimentos orgânicos e restrinjam o consumo de ultraprocessados, que tanto mal fazem à saúde. Para ela, é fundamental “comida boa nas escolas, nos hospitais, nos presídios, restaurantes populares espalhados pelo país; limites a propaganda e consumo de alimentos ultraprocessados; incentivo ao ato de cozinhar dentro de casa através da redução da jornada de trabalho e da remuneração do trabalho doméstico”, entre outros itens fundamentais para que a alimentação possa ser prazerosa e benéfica à saúde.

O curta-metragem Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, mostra muito bem a questão da fome e as prioridades do capital e do agronegócio

Além disso, um amplo trabalho de educação sobre a divisão do trabalho doméstico, dando responsabilidade também aos homens no ato de cuidar. Vânia concorda com ela e afirma que “o Brasil precisa da reforma agrária com todos os requisitos necessários para alavancar a produção de alimentos como forma eficaz de combate à fome”, mas isso, “precisa ser feito com trabalho decente e respeito às leis e às trabalhadoras e aos trabalhadores do campo”.

Para ela, “a questão da emancipação feminina, do trabalho doméstico e da alimentação saudável está intrinsecamente ligada aos direitos humanos e à luta por uma sociedade igualitária com valorização do trabalho e respeito à vida”.

Serviço:

Quem Vai Fazer Essa Comida?
Bela Gil
Editora Elefante
Preço: R$ 60


Texto em português do Brasil