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Quarta-feira, Junho 18, 2025

Sobre as águas da vida o silêncio dói

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

desfilados como afilhados da sorte e caminharem, os jeeps e hanimogues preparados centenas partem e quantos voltam?, vejo-os de esguelha partirem, sinto um silêncio que me arrepia, uma dor muda nesta alma de estrangeiro, ausente talvez que fazer?

X

Ao fundo vai nascendo o dia e eu aqui, sentado na cadeira de médico de dia, a enfermaria repleta e eu vejo o nascer do dia e a cabeça estiolada, memórias que nunca se cansam e saudades a cada instante.

Tiros nem ouvi-los, o silêncio é de bradar onde que noite nem sono, esta insónia de palavras contra as paredes da tenda, um gemido qualquer um soldado ferido, uma injecção qualquer a dor passa e de novo sono

– doutor!

e nem lá, ali presente numa distância de pasmar, sonho um pomar, um oceano, uma felicidade qualquer nesta dor que amargura, dores de cabeça e soldados, ao longe já tiros e metralhadoras operam mais uma acção, o dia chegando cansado também neste cacimbo do longe, tudo longe e nem eu perto, a minha cabeça vadia a minha vontade de partir, isto não é meu por que razão estar aqui?

A formatura pronta e o oficial de dia na praceta, todos formados e camuflados a brilhar

– atenção companhia, pronto!

desfilados como afilhados da sorte e caminharem, os jeeps e hanimogues preparados centenas partem e quantos voltam?, vejo-os de esguelha partirem, sinto um silêncio que me arrepia, uma dor muda nesta alma de estrangeiro, ausente talvez que fazer?, mais tarde um regresso incompleto e tantos colocados em caixas para o regresso inglório, um regresso repleto de dor e mentira, se foi mesmo assim, se nada foi inventado para se contarem histórias,

– heróis nacionais!

lia nos escritos da nação que nos pariu, onde que Salazar sentado num conforto e ordens,

– aqui jaz a memória dos vencedores, defendendo a pátria!

desfilam sozinhos, a vida mora ali ao lado onde uma mata sei lá, uma picada, a floresta cansada brada ventos calmos, as árvores sacodem ventos distraídos e nós sem isso seguimos, o cabo Esperança a meu lado e eu sem esperanças, cansado ainda a manhã surgia, a noite enfadonha inebriava qualquer distância perdida na rua das amarguras da minha saudade. Ainda assim a minha nostalgia nas pétalas distantes das árvores escondidas, o meu silêncio irrequieto nesta enfermaria de nada, este lugar de mágoas e feridas por sarar, ninguém sara saudades, ninguém cura feridas mentais e um soldado aos gritos se picado pelo mosquito tigre, o paludismo e resoquina se a dor sucumbe, a saudade Deolinda é uma coisa preciosa nesta ausência esquecida onde que nome a minha vida, onde que mapa o meu corpo se na tua cama presente murmuro o teu abraço e nada, estás efectivamente longe. Falo das minhas saudades e de que falarão estes soldados que a pátria esqueceu?

(1967), “Guerra Colonial: exército português em operações.”, Fundação Mário Soares / AMS – Arquivo Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114086 (2020-6-6)

Quantos dos tantos que partiram num navio velho para este longe sem nome, esta terra onde nem turras só a imaginação do estado num puder de mandar em tudo isto, é de quem lhes pertence, somos nada nesta terra de donos vivos, aqueles que contra nós disparam bazucas alegando com razão a vitória é nossa.

Sou apenas e isso, um médico de campanha, quantas vezes a minha vida sonha essa verdade e nada, quantas vezes sonho a minha terra e nada, anos a fio a depurar e a mastigar ânsias e raivas, os medos sempre presentes sabendo com noção isto não me pertence, pertenço aos amigos que lutam para que possam dar razão aos que a têm, sou um soldado isolados Deolinda, não nutro esta causa nem este rio a abandonar-me a cada instante, sinto cada vez mais o vazio nascer nas noites onde só insónias, não durma há dias e conto no calendário um regresso que seja, vivo ou morto salva-me desta casa de outros onde nada sinto nem consigo mandar.

Qual doutor coisa nenhuma, sou um soldado como vocês nesta floresta do longe, onde morrer é renascer na consciência dos que ficam, os familiares todos os anos recordam

– aqui jaz fulano tal!

filho da pátria esquecido pela nação que o fez vítima de uma coisa qualquer, desta talvez guerra de ninguém e porquê existir em todos nós, vestidos de bandeira a tiracolo

– representantes da nação que vos pariu!

viajam fantasias pela noite, percorrem os escombros do medo e do mistério a cada canto da floresta, o ruído do jeep cansado e todos cansados, uma ânsia interior por tantos nadas e a marcha continua, tem de ser dizem de lisboa os sábios destas coisas da guerra e agente lá, cumprindo e desempenhando essa vontade. Longe a minha cidade, longe a minha vida, aqui navego escuros e medos, percorro o desconhecido por dentro e por fora numa farda cansada, até ela se cansa qual a verdade nisto tudo?


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos o primeiro capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói


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