e quem me poderá julgar por ter sido um soldado cumprindo determinações da pátria?, só mesmo quem visitou estâncias varridas de perdidos e desaparecidos em combate, só quem viveu uma guerra difícil e em tanto inventada
XVIII
Lisboa asizada nesta estrada iluminada, as vozes de bares e cantinas de recreio, a lembrança ainda nesta masmorra de cabeça cansada, subo a rua e paro diante de alguém que me olha de soslaio, pergunto-me,
– porque me olhas transeunte?
mas era eu mesmo diante de mim, um espelho embaciado a fazer-me perguntas de vazio nesta estiolada vontade de correr e fugir dos silêncios, não sei, sinceramente, do que fujo, talvez desta minha mesma maneira de me olhar enquanto me penso e nada, perdi quase tudo que levara quando jovem, enfiaram-me num navio e deportaram-me rumo ao desconhecido, e eramos mais que muitos, não sei se milhares, mas eramos efectivamente bastantes para um ruído tão calado como o da morte!
Bebi dores infinitas, sabes?, varri da memórias sonhos e desejos neste casebre de um navio enjaulado num mar de ausentes das suas próprias consciências, percorremos léguas numa dor sem explicação, a dor não se explica e apenas se sente e aspirina acalma, morre-se vivo numa ânsia sem significado.
O mar a ladear-nos e nós embarcados numa aventura sem história, soldados de todos os cantos, uns com vida outros mais perdidos e a gente no mesmo barco, a farda e os galões faziam a diferença mas onde a diferença?, vamos embutidos num mesmo barco para uma mesma missão, comissão de lágrimas, é o esse desconhecido a que nos dizem ser áfrica,
– o que é áfrica, meu capitão?
terra a defender dizia Salazar numa presunção simples.
A vida esfumaça-se neste tão vagaroso regresso, tudo parece uma invenção ou um sonho pisar de novo a minha cidade, voltar vivo e sentir o abraço dos meus, rever o tejo que desliza feliz em busca de mar, as lavras que rega e barcos que abarca, tudo me parece tão estranho sabes?, este regresso tem um cheiro quase vazio, repleto de memórias e cansaços, dores de cabeça ao fechar os olhos e ver camaradas sem pernas, sem braços, estiolados e decapitados, recordar o estrondo de minas e tiros de balas perdidas,
– entendes?
e quem me poderá julgar por ter sido um soldado cumprindo determinações da pátria?, só mesmo quem visitou estâncias varridas de perdidos e desaparecidos em combate, só quem viveu uma guerra difícil e em tanto inventada,
– acreditas?
este papel de figurante vadiando matas, correndo à frente de balas, ter de ser especial e mostrar coragem onde o medo reinava, lisboa cansada espera-me e a mesma terra lá, recordo a estrada de benfica e nada de ti, saudades,
– escreve-me Deolinda.
é tudo um desperdício, nada vale a pena e tudo é ao mesmo uma sangria de sonos onde que bebedeiras façam esquecer qualquer vontade mas matar quem?, tudo escuro adiante e nada a vista, não se vê nada neste escuro medonho, a cabeço esvoaça e pensa e a gente sente tudo à nossa volta, como qualquer estalo amedronta. Estou cansado de viver dormente acredita, de recordações em cada instante e viver nesta mesma terra onde ninguém, a não ser o sonho.
Sobre as águas da vida o silêncio dói, este peso constante sobre as costas e a terra a levar-nos, esta amargura azurrada numa alma que se queixa e quem nos ouve?, apenas a nossa própria consciência ali, a nosso lado, dentro da cabeça cansada e farta de ver nadas a flutuarem sobre os dias, o calendário riscado por cada dia vencido, tudo isto cansa, sabes?, farto de sonhar e nada acontece a não ser esperar como morrer um dia,
– conheces luanda?
o mar sussurra distante e brame devagar ondas de esperança, ver o horizonte onde que navio um para o regresso e quando esse regresso, esperamos a cada instante e quando termina esta guerra?, estou cansado pá, farto de lágrimas e lamúrios, saudades e vontade de fugir, ouvir dia após dia
– um dia deserto, meu capitão!
e de mim um consolo, nada mais para oferecer também eu precisava de algum conforto e virar-me para dentro de mim sonhando-me em benfica, entrar na pastelaria e comer com gosto um pastel de nata, beber um café quente e lisboa fria nesta altura do ano, inverno sabes?, chove copiosamente imagino, ouvir o barulho do estádio da luz para o derby de hoje, Benfica-Sporting, ver o Eusébio, o Coluna, etc., o clube do meu bairro.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.