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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Fátima. Visão Cristã em linguagem culta

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Conheci pessoalmente, há alguns anos, quase há dez creio, em contexto de conferências académicas, Carlos A. Moreira Azevedo, português de Milheirós de Poiares, cuja sapiência tornou, por inevitável, cidadão do mundo. Apontado por colegas, Moreira Azevedo foi-me apresentado, antes de apertos de mão, como o ministro da cultura do Vaticano e afinal é hoje (e desde 2011) Bispo-delegado do Conselho Pontifício da Cultura no Vaticano, o que consolida a antecipação do título com que mo indicaram. Que é homem do saber, entende-se no contacto, mal o ouvimos ou lemos. Que aprofundou conhecimentos com a humildade dos sábios, também o constatamos. E que por isso mesmo é alvo de olhares e muitas críticas e se permite a tentação dos atrevimentos intelectuais, acaba por tornar-se evidente.

Fico muito feliz que tenha correspondido a um convite editorial para escrever sobre Fátima das sugestões religiosas, dando agora às livrarias o título Fátima das visões dos pastorinhos à visão cristã, porque é de máxima atualidade, vem mostrar uma faceta, diria eu “visita de dentro para fora”, já que vem de um homem que serve o Vaticano ao mais alto nível, percorrendo não só os seus corredores mas as prateleiras e arquivos da Santa Sé, fazendo-o intencionalmente sobre um acontecimento agitador da História e da história da Igreja em particular, capaz então de preencher lacunas com dados menos disponíveis; Moreira Azevedo apresenta informação inédita do Archivio Segreto  Vaticano (Arquivo Secreto do Vaticano).  De assento assim privilegiado, o autor revela o processo da escolha do primeiro bispo da diocese de Leiria e traz à luz novos dados sobre a política portuguesa entre 1917 e 1930. Além dos videntes, fala-nos de personagens essenciais a Fátima, como o Padre Manuel Formigão e o Bispo D. José Correia da Silva.

As duas grandes leituras do livro prendem-se com duas evidências: a palavra visão / visões é assumida, em desfavor da popular aparição /  aparições, o que constitui uma tomada de posição assumida (visão é de índole espiritual; aparição de ordem física). A segunda leitura é igualmente importante: a

capacidade que tiveram os mediadores dos factos e da mensagem, a começar pela própria Lúcia, dotada de uma vida longa, para retirar da imagética rudimentar uma resposta às situações históricas vividas pelas pessoas”.

A minha experiência pessoal ao falar de Fátima, como o tenho feito especialmente nos últimos meses, esbarra sempre em algumas dificuldades e ainda em algum preconceito que percorre as plateias. Fazer entender que em 1917 Portugal estava muito mais envolvido com outro tipo de acontecimentos, por exemplo, a “ressaca” da Lei da Separação Estado-Igreja, de 1911, deixando grande parte da população com uma angústia de orfandade; a evolução da República, muito conflituosa e experimental – em 1917 Afonso Costa, que tanto defendia a nova lei de Separação era eleito expressivamente para um terceiro governo com a sua marca, o que terá forçado a reação do major Sidónio Pais; com apoio militar de muitos saudosistas e uma adesão popular de inconformados, Sidónio assina o momento mais sangrento jovem República, num golpe de Estado ganho pela força das espingardas e pela ignorância dos seus apoiantes.

Mas 1917 é também o pior ano da Guerra Mundial, onde os portugueses acabam de chegar (para morrer, até ao flagelo final, em La Lys, no ano seguinte). E é o ano da Revolução Russa, cujos ecos chegarão a Portugal com aceitações diferentes, sector a sector (a burguesia culta, e a elite política, por vezes coincidentes, escondem-se  dessa realidade emergente). Enfim, Fátima não existe nas prioridade portuguesas de 1917 – e só terá expressão maior anos depois, mercê de muitos fatores e construções de índole muito diversa.

Moreira Azevedo percorre no seu livro a História e não nega o que já sabíamos – motivando as reações mais díspares das plateias. As visões de Fátima, de facto,  não tem, no ano em que ocorreram, nem a expressão que, à distância, pareciam ter tido; nem as visões de Fátima “tocam” afetivamente a Igreja, que, mais tarde, só muito mais tarde, apreciará e enquadrará o acontecimento.

Fátima não é dogma da Igreja. Mas é uma construção muito expressiva do culto mariano popular, do ciclo angélico, e do que Moreira Azevedo traz de novo a debate e que poucos autores contemplam: o ciclo cordimariano. (Cordimariano, do latim cor, cordis, coração e de mariano, de Maria, da natureza de Maria, cheio de graça).

O que se discute hoje, finalmente, já não Fátima como acontecimento legítimo ou encenação, mas sim as formas como o mesmo episódio se legitimou. Um povo pobre e muito carente, reuniu-se em torno de uma esperança, de matriz messiânica, que entendeu ver na presença partilhada da mãe de Cristo, comunicada através da experiência de três crianças. A visão cristã de um fenómeno religioso de cariz popular, tornou-se tão densa a ponto do papa Francisco se deslocar a Fátima já em Maio de 2017, partilhando com os populares presentes uma festa de crença em torno de um desejo legítimo de reencontro.

Sobre o autorSobre o livroCarlos Alberto de Pinho Moreira de Azevedo GCIH (n. Milheirós de Poiares, Santa Maria da Feira, 4 de Setembro de 1953) é o atual bispo titular de Belali.

Entre 2005 e 2011 exerceu as funções de Bispo-auxiliar do Patriarca de Lisboa.

Foi ordenado sacerdote, a 10 de Julho de 1977, por D. António Ferreira Gomes, à altura, Bispo do Porto.

A sua ordenação episcopal teve lugar a 2 de Abril de 2005, na Igreja da Trindade, na cidade e Diocese do Porto, tendo como ordenante principal D. José da Cruz Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa, auxiliado por D. Armindo Lopes Coelho e por D. João Miranda Teixeira, respectivamente, Bispo e Bispo-auxiliar do Porto, numa cerimónia presenciada pelos demais Bispos-auxiliares e Prelados da Igreja Portuguesa.

Fátima das visões dos pastorinhos à visão cristã,
de Carlos A. Moreira Azevedo

ISBN: 9789896268091
Edição: 04-2017
Editor: A Esfera dos Livros
Idioma: Português

 

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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