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João de Sousa

Quinta-feira, Abril 25, 2024

A noite em que prenderam Papai Noel

O velho Pascoal tinha uma barba comprida, branca, esplendorosa, que lhe caía em tumulto pelo peito. Estilo? Não: era apenas miséria. Mas foi por causa daquela barba que ele conseguiu trabalho. Por isso e por ter nascido albino, pele de osga e piscos olhinhos cor-de-rosa, sempre escondidos por detrás de uns enormes óculos escuros.

Naquela época já nem pensava mais em procurar emprego, certo de que morreria em breve numa rua qualquer da cidade, mais de tristeza que de fome, pois para se alimentar bastava-lhe a sopa que todas as noites lhe dava o General, e uma ou outra côdea de pão descoberta nos contentores. À noite dormia na cervejaria, na mesa de bilhar, enrolado num cobertor, outro favor do General, e sonhava com a piscina.

Tinha trabalhado quarenta anos na piscina — desde o primeiro dia! — como zelador. Sabia ler, contar, e ainda todas as devoções que aprendera na Missão, sem falar na honestidade, higiene, amor ao trabalho. Os brancos gostavam dele, era Pascoal para aqui, Pascoal para ali, confiavam-lhe as crianças pequenas, alguns até o convidavam para jogar futebol (foi um bom goleiro), outros faziam confidências, pediam o quarto emprestado para fazer namoros.

O quarto de Pascoal ficava junto aos vestiários masculinos. Aquela era a sua casa. Os brancos davam-lhe palmadas nas costas:
— Pascoal, o único preto em Angola que tem casa com piscina.

Riam-se:
— Pascoal, o preto mais branco de África.

Contavam piadas sobre albinos:
— Conheces aquela do soba, no Dia da Raça, que foi convidado para discursar? O gajo subiu ao palanque, afinou a voz e começou: Aqui em Angola somos todos portugueses, brancos, pretos, mulatos e albinos, todos portugueses.

Os pretos, pelo contrário, não gostavam de Pascoal. As mulheres muxoxavam, cuspiam quando ele passava, ou, pior do que isso, fingiam nem sequer o ver. As crianças saltavam o muro, madrugadinha, e lançavam-se à piscina. Ele tinha de se levantar, em cuecas, para os tirar de lá. Um dia comprou uma espingarda de chumbinhos, em segunda mão, e passou a disparar contra eles emboscado por detrás das acácias.

Quando os portugueses fugiram, Pascoal compreendeu que os dias felizes haviam chegado ao fim. Assistiu com desgosto à entrada dos guerrilheiros, aos tiros, ao saque das casas. O que mais lhe custou, nos meses seguintes, foi vê-los entrar na piscina, camarada para aqui, camarada para ali, como se já ninguém tivesse nome.

As crianças, as mesmas que antigamente Pascoal expulsava a tiros de chumbinho, faziam xixi do alto das pranchas. Até que numa certa tarde faltou a água. Não veio no dia seguinte, nem no outro, nem nunca mais. O cloro acabou pouco depois. A piscina murchou. Ficou amarela, de um amarelo baço, ficou ainda mais baça, e subitamente encheu-se de rãs.

Ao princípio Pascoal tentou combater a invasão indo buscar a espingarda. Não resultou. Quanto mais rãs matava, mais rãs apareciam, rãs felizes, enormes, que nas noites de lua cheia cantavam até de madrugada, abafando o eco dos tiros, ao longe, e latido dos cães.

Uma espécie de cansaço desceu por sobre as casas e a cidade começou a morrer. África — vamos chamar-lhe assim — voltou a apoderar-se do que fora seu. Abriram-se cacimbas nos quintais. Acenderam-se fogueiras nos jardins. O capim rompeu o asfalto, invadiu os passeios, os muros, os pátios. Mulheres pilavam milho nos salões. Os frigoríficos passaram a servir para guardar sapatos. Pianos deram excelentes coelheiras. Gerações de cabras cresceram a comer bibliotecas, cabras eruditas, especializadas em literatura francesa, umas, outras em finanças ou arquitectura. Pascoal esvaziou a piscina, limpou-a, juntou todo o dinheiro que tinha e comprou galinhas. Pediu desculpa à piscina:
— Amiga —, disse-lhe —, é só por alguns meses. Vou vender ovos, vendo os pintos e compro água boa, compro cloro, vais voltar a ser bonita como antigamente.

Os tempos que se seguiram, porém, foram ainda piores. Uma tarde apareceram soldados e levaram as galinhas. Pascoal não disse nada. Devia, talvez, ter dito alguma coisa.
— Esse albino está armado em arrogante —, irritou-se um soldado. — Deve pensar que é branco, vejam só, um branquinho de imitação.

Bateram-lhe. Deixaram-no como morto dentro da piscina. Meses depois, vieram outros soldados. Tinham-lhes dito que ali havia um albino que criava galinhas, e como não encontraram nenhuma, é claro, bateram-lhe também.

A guerra regressou com muita raiva. Aviões bombardearam a cidade, o que restava dela, durante cinqüenta e cinco dias. Ao trigésimo sexto, uma das bombas destruiu a piscina. Durante semanas, andou Pascoal à deriva por entre os escombros.
Uma vez apareceram três homens de jipe, um branco, um mulato, um preto, e todos de casaco e gravata.
— Meu Deus! Meu Deus! — Lamentou o mulato, fazendo com a mão um largo gesto de desânimo. — Foi um urbicídio isto, um urbicídio…

Pascoal não sabia o significado da palavra mas gostou dela. “Foi um urbicídio”, repetiu, e ainda hoje, sempre que se lembra da piscina, fica horas a remoer aquela frase: “foi um urbicídio, aquilo, um urbicídio”. Uma tropa de brancos muito estrangeiros, todos com chapeuzinhos azuis, recolheu-o numa madrugada de chuva e trouxe-o para Luanda. Ficou dois dias no hospital, onde lhe trataram das feridas e lhe deram de comer. Depois mandaram-no embora. O velho passou a viver na rua. Um dia, era Dezembro e fazia muito calor, o indiano do novo supermercado, na Mutamba, veio falar com ele:
— Precisamos de um Pai Natal — disse-lhe —, contigo poupávamos na barba e, além disso, como tens um tipo nórdico, ficava a coisa mais autêntica. Estamos a dar três milhões por dia. Serve?

A função dele era ficar em frente ao supermercado, vestido com um pijama vermelho, e de barrete na cabeça. Como estava magrinho, foi necessário amarrarem-lhe duas almofadas na barriga. Pascoal sofria com o calor, suava o dia inteiro debaixo do sol, mas pela primeira vez ao fim de muitos anos sentia-se feliz. Assim vestido, com um saco na mão, ele oferecia prendas às criancinhas (preservativos doados por uma organização não-governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar na loja. “Sou o Pai Natal cambulador”, explicou ao General.

Cambulador foi ofício em Angola até à primeira metade deste século: gente contratada para aliciar clientes à porta dos estabelecimentos comerciais. Cada dia Pascoal gostava mais daquele trabalho. As crianças corriam para ele de braços abertos. As mulheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca nenhuma mulher lhe tinha sorrido); os homens cumprimentavam-no com deferência:
— Boa-tarde, Pai Natal! Este ano como é que estamos de prendas?

O velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rua. Faziam roda. Pediam muita licença para tocar o saco. Um, pequenino, fraquinho, segurou-lhe as calças:
— Paizinho Natal — implorou —, me dá um balão.

Pascoal tinha instruções severas para só oferecer preservativos às crianças acompanhadas, e mesmo assim dependia do aspecto da companhia. O contrato era claro: meninos da rua deviam ser enxotados.

Ao fim da segunda semana, quando a loja fechou, Pascoal decidiu não tirar o disfarce e foi naquele escândalo para a cervejaria. O General viu-o e não disse nada. Serviu-lhe a sopa em silêncio.
— Faz muita miséria neste país —, queixou-se o velho enquanto sorvia a sopa —, o crime recompensa.

Nessa noite não sonhou com a piscina. Viu uma senhora muito bonita descer do céu e pousar na beira da mesa de bilhar. A senhora usava um vestido comprido com pedrinhas brilhantes e uma coroa dourada na cabeça. A luz saltava-lhe da pele como se ela fosse um candeeiro.
— Tu és o Pai Natal —, disse-lhe a senhora. — Mandei-te aqui para ajudar os meninos despardalados. Vai à loja, guarda os brinquedos no saco e distribui-os pelas crianças.

O velho acordou estremunhado. Na noite densa, em redor da mesa de bilhar, flutuava uma poeira incandescente. Voltou a enrolar-se no cobertor mas não conseguiu adormecer. Levantou-se, vestiu-se de Pai Natal, pegou no saco e saiu para a rua. Em pouco tempo chegou à Mutamba. A loja brilhava, enorme na praça deserta, como um disco voador. As Barbies ocupavam a montra principal, cada uma no seu vestido, mas todas com o mesmo sorriso entediado. Na outra montra estavam os monstros mecânicos, as pistolas de plástico, os carrinhos eléctricos.

Pascoal sabia que se partisse o vidro dessa montra, conseguiria passar a mão através das grades e abrir a porta. Pegou numa pedra e partiu o vidro. Já estava a sair, com o saco completamente cheio, quando apareceu um polícia. No mesmo instante, atrás dele, acendeu-se uma acácia, na esquina, e Pascoal viu a Senhora, a sorrir para ele, flutuando sobre o lume das flores. O polícia não pareceu dar por nada.
— Velho sem-vergonha — gritou. — Vais dizer-me o que levas nesse saco?

Pascoal sentiu que a sua boca se abria, sem que fosse essa a sua vontade, e ouviu-se a dizer:
— São rosas, senhor.

O polícia olhou-o, confuso:
— Rosas? O velho está cacimbado…

Deu-lhe um forte tapa com as costas da mão. Tirou a pistola do coldre, apontou-a à cabeça dele e gritou:
— São rosas? Então mostra-me lá essas rosas!…

O velho hesitou um momento. Depois voltou a olhar para a acácia em flor e viu outra vez a Senhora sorrindo para ele, belíssima, toda ela uma festa de luz. Pegou no saco e despejou-o aos pés do guarda. Eram rosas, realmente — de plástico.
Mas eram rosas.

pág. 3.

José Eduardo Agualusa

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