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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Rendimento Básico Incondicional | Utopia do século XXI ou base de um novo modelo social?

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Começa a ganhar força na Europa e um pouco por todo o mundo a ideia de que uma boa parte da população poderá não ter emprego no futuro. Uma das formas mais inovadoras e controversas de permitir que todos possam viver com dignidade independentemente da sua condição no mercado de trabalho, é o Rendimento Básico Incondicional (RBI). O Tornado falou com os responsáveis do RBI Portugal – Roberto Merrill, André Coelho e Ana Cristina Cunha – e também com Pedro Teixeira, assistente de investigação do departamento de finanças da London School of Economics, e procurou saber o que é e como poderá funcionar a ideia de um RBI para todos.

 

Como surgiu a ideia do RBI?

rbiRoberto Merrill: A ideia de um Rendimento Básico Incondicional não surgiu agora. As suas raízes históricas são essencialmente três:

No século XVI, a ideia dum rendimento básico para os pobres foi sobretudo defendida pelos pensadores humanistas Thomas More (1478-1535) e Ludovicus Vives (1492-1540). Thomas More defende a ideia no seu livro Utopia (1516), curiosamente pela voz dum viajante português, Raphael Nonsenso, mas é Ludovicus Vives que no seu livro De Subventione Pauperum (1526) defende a ideia de maneira mais detalhada.

No século XVIII, a ideia dum rendimento pago duma só vez a todos foi defendida pelo marquês de Condorcet (1743-1794) no seu livro póstumo intitulado Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (1795) e pouco tempo depois pelo seu amigo Thomas Paine (1737-1809) no seu livro Agrarian Justice (1796). Esta ideia de um rendimento pago duma só vez foi defendida recentemente por dois professores de direito da universidade de Yale, Bruce Ackerman e Anne Alstott, no livro The Stakeholder Society (1999) e é hoje amplamente discutida, como se pode verificar no livro The Ethics of Stakeholding (2003), editado por Keith Dowding, Jurgen De Wispelaere, e Stuart White.

No século XIX, é defendida a ideia dum Rendimento Básico Incondicional, que combina as duas ideias prévias – a de um rendimento básico para os pobres com a ideia de um rendimento pago duma só vez a todos. Esta ideia foi defendida por um número importante de pensadores ilustres, destacando-se entre eles o utopista francês Charles Fourier (1772-1837), assim como o mais influente pensador político inglês do século XIX, o filósofo John Stuart Mill (1806-1873), e também pelo pensador belga Joseph Charlier (1816-1896). Fourier defende a ideia no seu livro La Fausse Industrie (1836) e Mill, do seu lado, defende-a no seu livro Principles of Political Economy (1848). Por fim, Charlier defende a ideia no seu livro Solution du problème social ou constitution humanitaire (1848).

Já no século XX, existiram três períodos onde o RBI foi defendido:

Durante o período entre as duas grandes guerras mundiais, sobretudo na Grã-Bretanha, sendo o filósofo e matemático Bertrand Russell (1872-1970) o primeiro a fazê-lo no seu livro Roads to Freedom (1918), seguido pelo economista George D.H. Cole (1889-1959) em vários do seus livros, assim como pelo prémio Nobel de economia James Meade (1907-1995), no seu livro Outline of an Economic Policy for a Labor Government (1935).

Durante o período dos anos 60-70, o debate teve lugar sobretudo nos EUA, dois dos seus mais famosos defensores sendo Milton Friedman (1912-2006), no seu livro Capitalism and Freedom (1962), e James Tobin (1918-2002), ambos prémios Nobel em economia. O RBI também foi defendido nessa altura pelo político norte-americano Martin Luther King, assim como pelo Presidente Richard Nixon mas sem chegar a implementá-lo.

A partir dos anos 80, o RBI foi sobretudo defendido na Europa continental, sobretudo através da criação, em 1986, do BIEN (Basic Income European Network) com sede na Universidade Católica de Louvain, sendo o filósofo belga Phillipe Van Parijs, director da Hoover Chair, um dos seus mais activos fundadores. Desde 2004, o BIEN significa Basic Income Earth Network.

 

E em Portugal?

rbiEm Portugal, a existência de um movimento organizado em torno da defesa de um RBI é muito recente. Até hoje, a experiência que existe em Portugal mais próxima dum RBI é o pagamento de um «rendimento mínimo garantido», criado durante o Governo socialista de António Guterres. Hoje chama-se Rendimento Social de Inserção (RSI) e consiste no pagamento de um rendimento mínimo a todos os indivíduos que não se integrem no circuito do trabalho e da subsistência social. Também existiu durante o governo socialista de José Sócrates a intenção de implementar uma medida de incentivo à natalidade, a «Conta Poupança Futuro», atribuindo um cheque-bebé de 200 euros por cada criança nascida. No entanto, esta medida não chegou a ser implementada, apesar de ter sido aprovada no Conselho de Ministros, contrariamente às medidas similares implementadas em Espanha.

Existe uma bibliografia numerosa sobre o RBI, que tem crescido de modo assinalável desde os anos 80. Em Portugal, a bibliografia produzida é quase inexistente, mas são de assinalar algumas publicações recentes, que podem ser consultadas em  http://www.rendimentobasico.pt , em particular o livro de Martim Avillez Figueiredo, Será que os surfistas devem ser subsidiados? (Alêtheia, 2013) e a sua recensão crítica por Roberto Merrill, Liberal ou paternalista? (revista Diacrítica, Novembro 2013). Também pode ser lido um artigo de Roberto Merrill, intitulado «O Rendimento Básico Incondicional como um novo direito humano? Da exploração à pré-distribuição», publicado no site Esquerda.net e que desenvolve uma defesa normativa do RBI.

 

Tem havido alguns pilotos, nomeadamente na Finlândia e na Holanda. Quais as suas diferenças? Já há resultados?

André Coelho: Ainda não se iniciaram os casos-piloto previstos na Finlândia e na Holanda. Segundo as últimas informações, estão ambos os casos em estudo, adiantada apenas a data de 2017 para iniciar o caso-piloto na Finlândia. Este último identificou quatro objetivos para o programa: 1. revisão da Segurança Social relativamente a alterações no mercado de trabalho; 2. implementar verdadeiros incentivos ao trabalho; 3. evitar a armadilha da pobreza; 4. reduzir a burocracia e simplificar significativamente os procedimentos na atribuição de benefícios. Na Holanda, a motivação dos municípios interessados (entre outros, os de Utrecht, Tilburg, Groningen e Wageningen) parte da necessidade de agilizar os mecanismos da Segurança Social, que é muito rígida e, por vezes, contraproducente. Além disso gasta-se demasiado tempo e dinheiro com os controlos necessários para manter os esquemas. Pensam os proponentes que o RBI poderá libertar muitas pessoas dos estigmas da assistência social e gerar condições para que sejam mais criativas.

 

Há quem defenda que o RBI pode provocar a escalada da inflacção. Qual é o vosso comentário?

Pedro Teixeira: Fazendo uso do entendimento actual do fenómeno da inflação e das suas causas, existem essencialmente dois mecanismos pelos quais a introdução de um RBI poderia gerar inflação: o primeiro tem que ver com o método de financiamento escolhido e o segundo com as alterações aos padrões de consumo e de participação no mercado de trabalho decorrentes do efeito redistributivo do RBI. Felizmente, existe hoje uma razoável diversidade de modelos de financiamento de RBI. Contudo, apesar das diferenças entre eles, podemos agrupar os tipos de financiamento a usar, com alguma segurança, em dois grandes grupos: financiamento proveniente do aumento da massa monetária por acção de um banco central dotado de autonomia no plano da política monetária, e financiamento realizado através da cobrança de impostos sobre os rendimentos e/ou capital.

Quando o RBI é, nesses modelos, total ou parcialmente financiado com recurso à expansão da massa monetária (que pode ser alcançada de várias maneiras), a possibilidade de aumento do nível de preços é real, sendo que, a acontecer, dependerá do comportamento de outras variáveis económicas. A proposição, típica da teoria económica monetarista, de que a inflação constitui sempre um fenómeno monetário sugere que o aumento da massa monetária levará invariavelmente ao aumento da inflação. Mas, mesmo que aceitemos os pressupostos do monetarismo, esta proposição, hoje grosseiramente popularizada, está incompleta, pois esse aumento da massa monetária só se traduziria num aumento dos preços, caso fosse feita muito rapidamente, e a um nível muito elevado, bem superior à produção total.

Só que nem esta tese parece ser sempre válida, como demonstra a dificuldade que o BCE actualmente tem para atingir a sua inflação-alvo para a zona Euro, apesar do programa de Quantitative Easing já iniciado este ano, ou a ausência do aumento da inflação nos Estados Unidos durante os anos que se seguiram ao generoso programa de Quantitative Easing levado a cabo pela Reserva Federal norte-americana. Curiosamente, alguns economistas (Mark Blyth, Simon Wren-Lewis) têm proposto uma espécie de «Quantitative Easing para as pessoas», como solução para a dificuldade dos bancos centrais influenciarem o nível de inflação e de produto através das políticas convencionais. Resumindo: a massa monetária adicional nem sempre baixa as taxas de juro (especialmente quando a economia está presa na armadilha de liquidez) nem é necessariamente gasta, isto é, não aumenta necessariamente a procura agregada de bens e serviços de forma proporcional.

rbiQuanto à segunda fonte de financiamento: assumindo um RBI assente numa pura transferência de rendimentos e/ou capital dos mais ricos para os mais pobres, e propondo uma redistribuição de rendimentos comparativamente mais progressiva do que a actual (feita através do Orçamento de Estado e da Segurança Social), as possíveis alterações ao nível geral de preços poderão ser causadas pelo aumento da procura agregada – conhecido na literatura de pendor keynesiano por demand-pull inflation – (expectável tendo em conta a maior propensão marginal para o consumo das classes com rendimentos mais baixos) que, por sua vez, aumenta a velocidade de circulação da moeda. Mas, em resposta a este movimento, é também previsível a ocorrência posterior do fenómeno inverso: o aumento da oferta agregada. A extensão e magnitude do aumento geral dos preços devido ao aumento da procura dependerá do tempo de ajustamento entre procura e oferta, que varia muito de sector para sector.

Do lado da oferta, permanece também a possibilidade teórica da ocorrência de inflação devido ao aumento dos custos salariais (cost-push inflation). Mas, nesta questão concreta, estamos longe de chegar a um consenso relativamente ao impacto da introdução de um RBI na formação de salários: há argumentos válidos que prevêem o aumento do poder negocial dos trabalhadores, em resultado da introdução do RBI, mas há também quem argumente que, consoante o nível escolhido para o RBI e o método de financiamento, e dependendo da pressão competitiva dos empregadores, os salários poderiam descer. A ausência de um consenso neste debate decorre, fundamentalmente, da ausência de dados empíricos para análise.

De qualquer modo, é razoável esperar a ocorrência de efeitos na composição dos preços dos bens, ainda que seja difícil de prever, com apreciável grau de certeza, o aumento do nível geral de preços. Na verdade, ambos os resultados são perfeitamente compatíveis: o preço do cabaz de bens pode manter-se inalterável enquanto os preços de cada um dos bens deste cabaz se alteram. Neste caso, teríamos apenas uma recomposição de preços, que não constitui por si alteração ao nível de inflação, embora possa naturalmente afectar algumas pessoas mais do que outras. De resto, a ideia de que um RBI pode causar inflação não é, na verdade, muito diferente da ideia de que um sistema de redistribuição de rendimentos mais progressivo pode também originar inflação. No entanto, entendido meramente como uma nova política redistributiva, um RBI terá, à partida, um efeito sobre a inflação não muito diferente do aumento das taxas marginais dos escalões de IRS.

Um RBI pode gerar inflação tanto quanto outras políticas de redistribuição ou políticas monetárias seguidas, pelo que não é evidente a excepcionalidade do RBI. Mas isto não obsta a que se reconheça o carácter disruptivo que o RBI encerra, e que se procure implementar um RBI de forma gradual, modificando os seus pressupostos e modelo de financiamento à medida que se registam os seus efeitos na economia.

 

Se é uma medida positiva e boa para todos, porque acha que ainda não foi generalizada?

André Coelho: Há muito desconhecimento relativamente ao RBI, apesar das últimas vagas de notícias sobre o mesmo. Na ausência de dados, de factos e de resultados, muitas pessoas simplesmente assumem o pior relativamente ao comportamento humano, o que relega o RBI para uma ideia utópica na melhor das hipóteses, e na pior para uma verdadeira estupidez (ex.: que fará aumentar a pobreza devido à inflação; que não se conseguirá pagar). Para além do desconhecimento geral, da ausência de debate e da prevalência em grande medida de preconceitos (sobre comportamentos, gestão fiscal e trabalho), há quem defenda – como por exemplo o professor e activista pelo RBI Daniel Raventós – que as elites no poder não só não têm qualquer interesse na implementação do RBI, como poderão oferece-lhe considerável resistência, dado o potencial poder disruptivo do RBI, em particular sobre o mercado de trabalho.

rbiEste poder virá com a possibilidade da maior parte das pessoas ganhar o poder de dizer que não a condições de trabalho degradantes, à exploração e aos salários de miséria. E passar a ter forma de denunciar situações imorais nos locais de trabalho, inclusivamente expondo irregularidades e corrupções diversas nas direções das empresas, nos institutos públicos e nas IPSS. O RBI representa, portanto, uma grande potencial afronta ao status-quo, aos poderes instituídos. E ainda há a chamada Esquerda tradicional, para quem o pleno-emprego e a noção de reciprocidade são sagradas. Ou seja, a Esquerda tradicional, juntamente com os sindicatos e com estes uma ainda apreciável fatia dos trabalhadores, combate a ideia de RBI pela sua incondicionalidade (ausência de imposição da reciprocidade) e porque constitui uma afronta à noção de pleno-emprego. Acontece que o RBI, não ligando condições laborais à sua atribuição, está implicitamente a aceitar a redução estrutural do emprego observada nos últimos anos – e que irá continuar e agravar-se nos próximos anos – em vez de a combater como faz a Esquerda tradicional, que continua de pedra e cal vinculada à relação emprego-salário como única forma de garantir às pessoas o acesso aos recursos. Do lado da assistência social existe também a noção enviesada e perversa de que os pobres não têm capacidade para gerir as suas vidas, e portanto dinheiro incondicional nas suas mãos só dará azo a desperdícios vários. Existe uma forte tendência dos serviços sociais para controlar, para micro-gerir a vida das pessoas que, pela injustiça do sistema, se vêm obrigadas a recorrer à Segurança Social. Ora a introdução do RBI é simplesmente destruir esse castelo de assistencialismo paternalista, para além de potencialmente eliminar a necessidade do trabalho de milhares de pessoas hoje empregadas a gerir e forçar o funcionamento de um pesado e complexo sistema assistencialista.

 

Já tiveram conversações com os partidos políticos portugueses sobre o RBI? Qual foi a sua reacção?

Ana Cristina Cunha: Sim, neste momento temos um partido político que apoia o Rendimento Básico Incondicional, o PAN – Pessoas Animais Natureza. Este partido considerou o RBI uma das suas prioridades nas legislativas, faz parte do seu programa eleitoral e já vem apoiando este conceito desde as Europeias de 2014.

Estamos, com eles, a criar e desenvolver projectos para que as propostas do PAN sobre o RBI possam ser debatidas e desenvolvidas no sentido da sua aplicação, tanto dentro do partido como fora, na sociedade civil, académica e política.

A conferência que vamos organizar a 15 e 16 Fevereiro, na Assembleia da República e na Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, é um reflexo deste trabalho que tem vindo a ser realizado em conjunto. Já vem de uma série de outros debates e encontros e segue a mesma linha, com mais eventos em agenda.

O nosso objectivo é a divulgação e investigação da viabilidade de um rendimento básico a nível nacional e europeu, promovendo o debate de ideias e a sua discussão, tentando encontrar soluções para a sua aplicabilidade.

Temos, também, um grupo de activistas do movimento RBI Portugal que criou o projecto «Bater de frente». Consiste em realizar contactos com indivíduos, movimentos e grupos da área política e outras, no sentido de os convidar a conversar connosco sobre o RBI e integrar o movimento, como parceiros ou apoiantes do conceito. Temos tido resultados muito positivos e chegado a muitos elementos da comunidade política e da sociedade civil. Estivemos reunidos com alguns candidatos à Presidência da República e também com alguns partidos políticos nas Legislativas. A ideia de um Rendimento Básico Incondicional foi bem acolhida pela maioria, que questiona essencialmente a forma de financiamento mas reconhece os seus benefícios e as suas potencialidades.

O RBI é mais à frente, não se posiciona nem à direita nem à esquerda, tem adeptos e simpatizantes em ambos os lados e as teorias tocam nas duas formas de pensar, portanto, por enquanto, nem os partidos se querem comprometer nem os políticos querem tomar posição.

Leia também, do mesmo Autor:   Davos |Suspiro ou semente de uma nova ordem económica e social?

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