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Sexta-feira, Abril 26, 2024

A epístola de Macron aos europeus

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

(I) A liberdade condicionada

Durante décadas as instituições europeias foram governadas por um bloco central socialista, popular e democrata cristão entrelaçado a uma impressionante burocracia e a uma fina rede de interesses.

1. O novo Senhor Europa

Episodicamente, os liberais – família menos numerosa e mais multifacetada – deram também a sua contribuição à construção de que fundamentalmente foram arredados.

Os dois grandes blocos tradicionais encontram-se no entanto em crise. O ‘Partido Popular Europeu’ (PPE) parece mais uma guerra civil que um partido, com uma facção dita nacionalista do Primeiro-ministro húngaro Viktor Orban a denunciar em cartazes o Presidente da Comissão Europeia, e figura de maior peso institucional no partido, por este supostamente querer encher a Europa de refugiados. Este, em contrapartida, com vários correligionários, exige a expulsão da delegação húngara de Viktor Orban do partido.

Os responsáveis, em vez de tomar decisões, adiaram-nas. O novo episódio da telenovela está previsto para dia 20 de Março e consiste em saber se o pedido para expulsar a Hungria do partido assinado por um conjunto significativo dos membros do PPE – curiosamente incluindo o CDS-PP mas excluindo o PSD – vai ser aceite ou não. Como é de esperar, nada disto joga a favor do PPE que, a crer nas sondagens, irá conhecer uma substancial redução dos seus eleitos no Parlamento Europeu.

As coisas não se apresentam como melhores no lado socialista. Com a exclusão de Malta e Roménia – em ambos os casos, presentes no Governo e mergulhados numa pouco salutar imagem de corrupção que não parece atingir as perspectivas eleitorais domésticas – e de outros raros exemplos como Portugal, a crise é generalizada, sendo que o BREXIT, a confirmar-se, tirará a potencialmente maior presença socialista europeia.

Depois de ter sido quase forçado a demitir-se, o Presidente francês tem realizado uma notável recuperação junto de opinião pública feita de cedências nas medidas antipopulares anunciadas, estoicas e intermináveis presenças em reuniões com anónimos cidadãos por todo o país e batendo o recorde de permanência na mais emblemática reunião anual francesa, o salão da agricultura.

Num equilíbrio, todavia instável, com um partido liberal que ele quer engolir mais do que integrar, Macron fez um pequeno manifesto escrito em todas as línguas da União Europeia que se tornou o principal acontecimento político e a principal referência com o qual conta fazer na Europa o que fez no seu país: pulverizar o espectro tradicional partidário e engolir o velho centrão num novo ‘partido da Europa’.

2. A desinformação

E, naturalmente, o manifesto começa por prometer a liberdade aos europeus, mas a liberdade em relação a algo que na sua maioria eles dificilmente se terão apercebidos que precisam de ser libertados: a influência russa na vida político-partidária europeia.

Compreende-se que o Presidente Macron, que foi alvo de uma cerrada campanha negativa por parte das autoridades russas, autoridades que apostaram em todos os concorrentes com probabilidade de vencer à excepção dele, não tenha gostado da experiência a que foi submetido.

Mas manda a verdade dizer que a Rússia ocupa apenas um segundo lugar num campeonato de desinformação liderado pelas autoridades islâmicas iranianas, que têm tradicionalmente também investido, mais do que qualquer outras, na compra de influência política e mediática na Europa, na promoção da desestabilização em todos os palcos (a começar no jihadismo) e no terrorismo, sendo mesmo o único país com instituições, finalmente, incluídas na lista das organizações terroristas europeias.

Mais importante do que isso é entender que a desinformação é apenas um dos instrumentos de guerra, e que é nesse contexto que deve ser visto. Preocupar-se com a desinformação russa e não dizer uma palavra sobre a guerra contra a Ucrânia é algo típico da lógica da burocracia europeia – que está habituada a partir a realidade em siglas, agências e capelas de forma a torná-la compatível com a sua organização de poder, mas incompatível com a compreensão dessa mesma realidade.

Estaline matou os ucranianos à fome para impedir que estes se virassem contra o seu poder. Putin não é mais moderado do que Estaline. A questão é que nem Estaline se ficou por aí nem Putin quer ficar. A recuperação do império perdido é a primeira etapa, e essa etapa significa já desmantelar a União Europeia, mas nada aponta para que ele se satisfaça apenas com isso.

Depois, não menos brutais, mas com uma capacidade de dissimulação incomparavelmente mais sofisticada, temos o jihadismo orgânico iraniano, que hoje recupera a sua antiga aliança com a ‘Irmandade Muçulmana’ e reparte com a Rússia os despojos da Síria mas cujo objectivo assumido é o poder universal. Não se trata apenas de conquistar Damasco, trata-se de se projectar através do Mediterrâneo a partir daí.

A epístola sobre a liberdade propõe também a criação de uma ‘Agência europeia de proteção das democracias’ que é a imagem de marca da velha burocracia europeia que cola totalmente a Macron; para cada problema, uma agência, ou uma directiva, um conselho ou isso tudo em conjunto. A agência europeia da democracia iria assim juntar-se à dos direitos fundamentais, que já existe em Viena. O seu único significado útil será o de retirar à democracia o seu estatuto de ‘fundamental’.

3. A internet e a liberdade europeia

Depois de vituperar a influência das potências estrangeiras nos processos políticos e eleitorais (a Rússia não é designada especificamente, e isso abre a porta a entender a rede como incluindo Steve Bannon na difusa sugestão de que todo o populismo é manobrado pela Rússia) Macron volta à carga sobre ‘as potências estrangeiras’ a propósito da internet.

Como disse no ponto anterior, creio que é conceptualmente mais claro colocar a estratégia de desinformação do jihadismo iraniano ou da Rússia no domínio das ameaças externas, a par com os tanques, grupos terroristas, espiões e publicistas pagos, etc.

A questão da internet não se relaciona apenas com a ameaça externa e aparece, no domínio da liberdade, com a noção apadrinhada pelo consenso europeu de que esta teria algo a ver com o crescimento da intolerância:

Devemos banir da Internet, com regras europeias, todos os discursos de ódio e de violência, pois o respeito pelo indivíduo é o alicerce da nossa civilização de dignidade’.

A internet tem um enorme impacto na sociedade contemporânea, mas não creio que faça qualquer sentido responsabilizá-la pelo ódio, violência ou o que quer que seja de mais ou menos negativo. Fazê-lo, é um erro político de paralaxe.

A internet tornou possível a todo o cidadão veicular os seus pontos de vista de forma instantânea em todo o globo, e isso é naturalmente uma enorme revolução com múltiplos impactos, mas não inventou nada na capacidade humana de amar ou odiar.

O impacto específico da internet no domínio da liberdade é o que se faz sentir na comunicação social, que foi o ‘quarto poder’ durante muitos séculos e que o deixou de ser agora.

Quer isto dizer que aquilo que foi considerado como algo de exclusivo à comunicação social, como a liberdade e a regulação, vai ter cada vez mais de ser visto como algo a ter de ser aplicado transversalmente na sociedade, incluindo as comunicações individuais, as das pessoas colectivas e, claro, a imensa mole de interesses comerciais, políticos ou imperiais que se escondem por trás de falsas identidades.

Em qualquer caso, a internet abriu claramente uma nova dimensão humana da liberdade, e tratar dela apenas como forma de transmissão de ‘discursos de ódio e de violência’ é alinhar por um padrão securitário contrário à liberdade que é típico de todos os regimes autoritários e que não deveria ser também típico da Europa.

Da mesma forma que a imprensa ou a televisão transmitem ‘discursos de ódio e de violência’ também o mesmo acontece com a internet. Mas que diríamos nós se porventura o enunciado de um programa político sobre a imprensa se limitasse a dizer sobre ela o que Macron se limita a dizer sobre a internet? Ou seja, que seria necessário limitar a capacidade da imprensa para transmitir ‘discursos de ódio e de violência’? Não deveríamos concluir que estávamos perante uma forma de atacar a liberdade de imprensa?

Neste particular, a mensagem de Macron é não só elitista, mas é também iliberal e tem de ser denunciada enquanto tal.


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