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Sexta-feira, Abril 26, 2024

A insustentável arrogância da Segurança Social

António Garcia Pereira
António Garcia Pereira
Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Professor Universitário

seg-social

É um dado público e conhecido que entre 2009 e 2014 os rendimentos dos portugueses tiveram uma quebra média de 11%, 1/3 dos trabalhadores recebia em 2014 menos de 700€ por mês e que 1/3 da população portuguesa esteve em situação de pobreza pelo menos durante um ano, sendo as crianças as principais vítimas dessa hecatombe.

Não obstante tudo isto, as medidas legislativas da “austeridade” fizeram com que, precisamente na mesma altura, o número de beneficiários do abono de família, do complemento solidário para idosos e do rendimento social de inserção fosse drasticamente reduzido, sucedendo, por exemplo, que metade dos cerca de 400 mil beneficiários (em 2009) do RSI já tivesse sido, em 2014, excluído dessa prestação social!

Ora, não obstante este quadro terrível de pobreza social e a proclamação formal (inclusive na Constituição – artigo 63º) de um sistema de segurança social destinado precisamente a proteger “os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência”, o certo é que continuamos a ter uma Segurança Social autocrática e feudal, que se comporta de forma absolutamente indigna e intolerável relativamente aos cidadãos que a ela têm de recorrer, e que precisamente são os mais fracos, os mais necessitados e os mais vulneráveis.

É certo que a recente Lei nº 34/2006, de 24 de Agosto, terminou com a humilhante obrigação de apresentação quinzenal dos desempregados. Mas nem por isso os cidadãos com direito ao subsídio de desemprego, ou a outros subsídios, deixaram de ser tratados como cidadãos “de segunda”.

São as filas enormes, formadas muitas vezes de madrugada, à porta dos serviços para conseguir uma das mais que insuficientes senhas de atendimento. É a permanente tentativa de encontrar um qualquer subterfúgio para a denegação do direito e que passa, não raras vezes, pela recusa do recebimento da documentação sob o pretexto de que falta este ou aquele papel. É o total desrespeito pelo essencial direito dos cidadãos à informação sobre o andamento dos procedimentos de que são parte directa e interessada ou sobre a razão de ser desta ou daquela decisão, não se dignando explicar minimamente o que afinal se passa.

É o truque – pois que de truque se passa – de aniquilar o basilar direito de audiência prévia do interessado enviando “notificações” por via postal simples, sem data nem carimbo dos Correios, mas efectivamente remetidas vários dias depois da data colocada no ofício, fazendo assim com que, quando estas chegam ao destinatário, o curto prazo para o cidadão se pronunciar ou juntar o documento em falta já tenha entretanto decorrido e contando com que inúmeros elementos do povo desconheçam que tais “notificações” são completamente ilegais e, mesmo que o saibam, não tenham disponibilidade física, material ou emocional para reagir perante tal golpe.

Quando um trabalhador é despedido sob a alegação de uma justa causa inexistente ou se vê forçado a resolver o seu contrato de trabalho com justa causa, a lei [1] é bem explícita ao estabelecer que tal desemprego é considerado involuntário e confere direito ao recebimento do respectivo subsídio desde que o trabalhador faça prova de que já intentou em Tribunal a acção respectiva. E, todavia, todos os dias são enviados a trabalhadores desempregados nessas circunstâncias ameaçadores ofícios da Segurança Social apontando logo para o indeferimento por o mesmo desemprego não ser considerado… involuntário!?

A lei [2] também determina que quando o trabalhador é ilegalmente despedido e ganha a acção, tem direito às remunerações intercalares entre a data do despedimento e a data da decisão definitiva, pagando o patrão os primeiros 12 meses e tendo “a entidade competente da área da segurança social” de pagar, “até 30 dias após o trânsito em julgado da decisão que declarou a ilicitude do despedimento” as retribuições intercalares dos meses seguintes. Mas a Segurança Social, em alguns casos há mais de um ano, pura e simplesmente não paga!

Tudo isto porque, perante uma actuação ou uma decisão ilegais como são todas estas, entre muitas outras, e face à completa ineficácia de quaisquer outros meios (dos graciosos e hierárquicos às reclamações para a tutela, passando pelos pedidos de intervenção do Provedor de Justiça), o único caminho que, em abstracto, resta é o recurso a uma via tão cara e inacessível quanto ineficaz, por serem um autêntico “poço sem fundo”, como é a dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

E assim, ciente da impossibilidade de defesa, em tempo útil e de forma efectiva e eficaz, dos direitos dos cidadãos, a Segurança Social comporta-se perante estes como se de escravos se tratassem.

Há que pôr fim a esta indignidade! Mas duas perguntas se impõem: Porque é que este governo, agindo como o anterior, não toma uma única medida para modificar este estado de coisas? Não será porque é bem mais fácil tratar mal uma viúva, um desempregado ou um idoso pobre do que ir cobrar aos patrões os cerca de 10 mil milhões de euros que têm de dívidas à Segurança Social?…

[1] Cf. artº 9º do Decreto-lei nº 220/06
[2] Cf. artº 98º-N do Código de Processo do Trabalho

Nota do Director

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores e não reflectem necessariamente os pontos de vista da Redacção ou do Jornal.

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