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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A sombra do «Espírito Santo» em Portugal

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Fazer de José Sócrates o bodo expiatório de tudo o que há de podre no nosso sistema político é obviamente a melhor forma de preservar esse sistema tão intocado quanto possível.

  1. O sagrado e o profano

Não há nada de mais originalmente português – e no meu modesto entendimento, de mais belo no que há de espiritual na religião – do que o “culto do Espírito Santo” que praticamente se confina hoje em dia aos Açores.

Ironicamente, quis a história fazer do “Espírito Santo” o nome da mais importante casa financeira da história contemporânea de Portugal, símbolo da confusão de interesses e do “complexo financeiro” que domina a vida económica, social e política portuguesa, e que não podia simbolizar de forma mais perfeita a antítese ao “Espírito Santo” tradicional português.

Como revela o biógrafo oficial mais conhecido do regime, Franco Nogueira, o “Espírito Santo” é uma presença constante na vida política portuguesa e muito em especial de Salazar, tendo inclusivamente financiado a vinda do casal Garnier e a encenação de um pseudorromance entre a jornalista do casal e o nosso ditador.

E se a revolução desestabilizou por alguns anos a sombra do “Espírito Santo” entre nós – mas não outros negócios que se vieram a revelar fundamentais na evolução do regime – em breve o temos de volta a ele e literalmente, ao seu espírito, ou seja, uma pletora de casas financeiras vivendo em conúbio mais ou menos óbvio com o Estado e a política que prosperaram durante décadas à custa do erário público nacional.

Portugal tornou-se campeão na falta de transparência nas relações entre a sua classe política e financeira, instituindo uma passadeira rolante entre membros do governo e da finança e uma teia de interesses, negócios e cumplicidades entre eles.

Será necessário lembrar Cavaco Silva e a transformação do seu núcleo duro político financeiro no BPN ou as aventuras do principal grupo de comunicação social-democrata na banca, nomeadamente através do BPP? E o financiamento descarado do BPN/SLN a Cavaco Silva antes de falir?

Os socialistas foram tão ou mais longe que a direita na teia de compadrios e negócios no universo “Espírito Santo” nas PPP ou em tudo o resto, com a agravante, no caso de José Sócrates, de ter tido o desplante de acabar com as férias judiciais, atitude que lhe valeu o ódio corporativo da classe e que explica em certa medida o empenho desta em o perseguir.

  1. Reforma política ou encontrar o bode expiatório?

Poderia o poder judicial e político adoptar em Portugal o que é a regra da generalidade do funcionamento das democracias (excepção feita aos vários abrigos fiscais) de submeter o segredo bancário ao interesse público. Para que isso acontecesse, teria de ter algum interesse genuíno na reforma do nosso sistema político-financeiro e na perseguição do negócio privado à custa do erário público, o que não creio ser o caso.

É incompreensível que entre nós os agentes económicos, políticos e sociais, nomeadamente os que giram à volta do Estado (e isto inclui toda a banca) não sejam obrigados a documentar todos os pagamentos que fazem, e que naturalmente sejam considerados culpados de crime se não souberem explicar a origem e o destino de milhões que transacionam.

Na verdade, não parece que as intenções estivessem para além de cilindrar José Sócrates. No entretanto, o Banco Central Europeu forçou a falência do Grupo Espírito Santo, e a perseguição a José Sócrates tornou inevitável a investigação dos negócios do Espírito Santo e dos grandes grupos como a EDP ou a antiga Telecom, com apreciáveis danos colaterais.

Os “Panama Papers” acabaram por revelar muito do segredo bancário tão incensado entre nós, com a irónica peculiaridade de o consórcio de jornalistas que administra o sistema ter como parceiro português o maior grupo de imprensa, e justamente o que mais enfeudado esteve ao apadrinhamento do “grupo Espírito Santo”. Ou seja, confiou à raposa a tarefa de guardar o galinheiro.

Depois de manter um embaraçado silêncio sobre as revelações dos Panama Papers sobre si, eis que o cartel de silêncio começa a soçobrar com um dos seus membros a dar à estampa um livro onde confessa os lautos presentes que recebeu do Grupo Espírito Santo e dá algumas pistas sobre a participação dos seus colegas na rede de afilhados do “Espírito Santo”.

Entre as inúmeras questões que este novo desenvolvimento coloca, duas há que são neste momento incontornáveis.

O que se passa com a plêiade de comentadores televisivos que fizeram ou fazem a ponte entre os canais de televisão e os partidos políticos, lote que inclui personalidades tão importantes como Marques Mendes ou Marcelo Rebelo de Sousa?

O problema não é só nem fundamentalmente julgar sobre a sua honestidade, mas antes entender até que ponto não pode informação privilegiada sobre eles estar a ser utilizada para os condicionar politicamente.

A segunda questão é a de saber a razão da urgência em eliminar o ex-Primeiro Ministro José Sócrates. Será que há quem receie que o que ele tem a contar possa causar estragos dificilmente reparáveis?

Fazer de José Sócrates o bodo expiatório de tudo o que há de podre no nosso sistema político é obviamente a melhor forma de preservar esse sistema tão intocado quanto possível.

  1. A dimensão internacional da crise

Durante todos estes anos, Angola serviu como bombo da festa e razão de ser de tudo o que de mau aconteceu entre nós, sem que aparentemente ninguém tivesse o bom senso de se perguntar como era possível que se tivessem assim invertido as posições, a ponto de a ex-colónia portuguesa ser responsável por tudo o que de mau se passava entre nós.

Angola e a sua elite (com a excepção de Cabo Verde) têm uma relação longa e profunda com Portugal, e sofrem naturalmente dos mesmos vícios, assim como também partilham das suas qualidades. Qualquer análise objectiva tem de reconhecer que, no quadro das potências petrolíferas africanas, a antiga colónia portuguesa se destaca pela positiva.

A verdade é que Angola desempenhou por um lado o papel de testa de ferro da República Popular da China em Portugal, e por outro foi também vítima das burlas protagonizadas por portugueses e angolanos, mas não tem qualquer papel estratégico na determinação do que se passou em Portugal. É mais cómodo e menos arriscado dizer mal de Angola do que da China, e só assim podemos compreender a obsessão da imprensa portuguesa com Angola.

Para além da China, a fonte internacional de corrupção mais importante entre nós foi o eixo irano-venezuelano, e é curiosíssima a forma como se procura esconder essa verdade dos portugueses.

Faz-se um ensurdecedor barulho sobre os contratos de contrapartidas pela compra de submarinos, mas deixa-se de fora o único contrato que não é relativo a sucata, comissões ou contrapartidas fictícias; a colaboração da Ferrostaal com as autoridades portuguesas no torpedear das sanções internacionais ao Irão e no iniciar dos contratos luso-venezuelanos.

Fala-se do apagão fiscal de muitos milhares de milhões de euros de fundos saídos de Portugal. São fundamentalmente fundos da petrolífera venezuelana que saíram silenciosamente do BES por responsabilidade política de um membro do governo que, coincidência, tinha sido consultor, exactamente, da petrolífera venezuelana. A Inspecção Geral das Finanças conclui ser impossível que o apagão tivesse mão humana, sendo tudo uma infeliz coincidência.

Fala-se de cem milhões de Euros saídos do Grupo Espírito Santo só em presentes a dirigentes venezuelanos, mas nada se investiga a esse propósito.

A imprensa espanhola e internacional publicitam largamente uma operação das autoridades judiciais portuguesas em Madrid e Andorra para detectar cinco mil milhões de euros da petrolífera venezuelana em contas do BES, mas há um sepulcral silêncio sobre a mesma entre nós.

Será que é aqui que está o nó górdio da questão? Será que é sobre isto que se quer manter um pesado véu de silêncio?

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