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Quinta-feira, Abril 25, 2024

John Edgar Hoover sem herdeiros

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Democracia, demagogia e mandarinato

O retrato feito por Francis Fukuyama no seu segundo volume de história política do sétimo presidente dos EUA – Andrew Jackson 1829-1837 – é uma obra-prima da ciência política e um retrato fiel daquilo que hoje em dia se convencionou denominar de ‘populismo’.

Andrew Jackson foi o primeiro dos presidentes a fazer a ruptura com a elite aristocrática da Nova Inglaterra que dominou a política americana até ele, e a fazer a apologia de uma república em que todo o bom cidadão americano estava habilitado a exercer qualquer cargo na estrutura federal.

Presidente populista

O livro de Fukuyama – que aparece em 2014, antes de Donald Trump se afirmar como figura dominante da política americana – faz talvez a melhor antecipação que já li do que poderia vir a ser um presidente populista nos EUA, mas faz ainda outra coisa de igual importância; explica-nos a importância das estruturas burocráticas de governo e da sua permanente tensão com o poder político, democrático ou não. O mandarinato é a mais antiga estrutura deste tipo, que como sabemos foi inventada na China, mas que sob formas apenas superficialmente diferentes fez a viagem até à actualidade.

A história política da humanidade tem sido marcada por uma permanente tensão entre os executivos e as suas estruturas burocráticas, e isso é também verdade nas democracias. Embora os políticos democratas tentem escamotear essa realidade, eles são frequentemente apenas os ‘relações públicas’ de decisões que outrem tomou e que eles nem sempre compreendem na sua totalidade.

Isso é tanto mais assim quanto a administração pública – bem ao contrário do que o que imaginava Andrew Jackson – assume cada vez mais uma grande complexidade, mas também pela mesma razão pela qual isso tem sido assim ao longo dos séculos: porque a administração tenta perpetuar e estender o seu poder tanto quanto pode, num interminável mandarinato.

Democracia contemporânea

A realidade política americana – que representa melhor do que nenhuma outra a democracia contemporânea – é um cenário ideal para vermos esse tipo de tensão, e a personalidade que melhor encarnou esse poder da máquina contra a legitimidade democrática foi o antigo chefe do poderosíssimo FBI, John Edgar Hoover, que foi seu director durante 37 anos e com seis presidentes diferentes, e cuja vida se tornou mesmo o tema de um filme.

Na realidade, Hoover utilizou a sua posição de funcionário não eleito para acumular a informação necessária que lhe permitiu ter as várias administrações presidenciais nas suas mãos e para exorbitar de forma flagrante dos seus deveres para os privilégios de poder não consonantes com o que é suposto ser um regime democrático.

Apesar de isto ser bem conhecido, não houve nos EUA nenhum movimento no plano jurídico ou no puro plano político que tirasse conclusões do episódio John Edgar Hoover e que lhe tentasse pôr cobro, para além da submissão da nomeação a confirmação senatorial.

John Edgar Hoover, James Comey e política interna americana

Como vários dos seus predecessores, mas talvez de forma mais incisiva, James Comey, tentou repor em marcha a herança de John Edgar Hoover. A forma como se colocou em posição de supervisor de Hillary Clinton, jogando até ao último momento com a óbvia fragilidade que foi a da sua gestão pessoal do sistema de correio electrónico oficial, dá-nos uma clara noção dessa sua ambição.

Com Donald Trump, voltou a repetir a jogada, agora na base do ficheiro da manipulação russa das eleições americanas. E Donald Trump – que tem todos os defeitos do populismo que encarna e mais alguns que lhe são pessoais – teve aqui a coragem política que faltou aos seus predecessores, metendo-o na rua.

A maioria dos observadores pensou então que Donald Trump desta vez tinha ido longe demais, já não se tratava de rasgar acordos internacionais, passar um raspanete público aos seus aliados europeus, falar grosso à China ou pôr o clero iraniano na ordem, ele desafiou nem mais nem menos do que o todo-poderoso director do FBI.

E foi assim com surpresa – e confesso que minha também – que todos vimos o antigo director do FBI vir ao Congresso confessar que tinha organizado campanhas de imprensa

contra o seu patrão (o Presidente da República) com informação alguma secreta e cuidadosamente seleccionada, de forma a dar entender – falsamente – que havia uma investigação em curso contra o presidente por suspeitas de colaboração sua com a Rússia.

Com este episódio, Donald Trump assegurou que John Edgar Hoover não deixa herdeiros e que o sistema democrático americano se reforçou consideravelmente.

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