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Quinta-feira, Abril 25, 2024

A medicina e os médicos face à morte

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

Nas nossas representações o médico luta contra a dor e a morte.

As nossas representações mais imediatas à volta da profissão de médico e da actividade da medicina surgem quase sempre associadas à luta contra a doença e, por último, contra a morte.

Quando na nossa infância queríamos ser médicos, enquanto outros optavam por ser astronautas ou bombeiros, era porque queríamos curar os doentes, queríamos libertar o nosso avô da doença que o atormentava, queríamos curá-lo, salvá-lo. Mais tarde, duma forma mais ou menos romântica, mais ou menos fantasista e ingénua, continuamos a representar o médico como um herói que luta abnegadamente pela vida do seu paciente, combatendo a doença e fazendo recuar constantemente o espectro da morte.

Neste âmbito, às representações que todos temos sobre a morte, devemos acrescentar aquelas que resultam da especificidade desta actividade. Na nossa luta colectiva pelo esquecimento da realidade da morte, a classe médica representa um papel especial: nela depositamos todas as nossas esperanças, as últimas e mais radicais, para que a morte seja derradeiramente derrotada.

Uma ingenuidade que não queremos assumir enquanto tal.

A medicina e o seu cortejo de produtos e técnicas representam a guarda avançada nesse combate fundamental. Inconscientemente, aguardamos a sua vitória. Inconscientemente, somos todos positivos e positivistas. O nosso desejo, tão oculto quanto ancestral de imortalidade, alimenta o nosso positivismo espontâneo e congénito que se instalou em nós como uma filosofia espontânea.

Acreditamos ou desejamos acreditar que a ciência em geral e a medicina em particular acabarão por vencer todos os obstáculos, ultrapassar todas as dificuldades e re-fundar uma humanidade finalmente livre de todo o mal e sofrimento.

Porém, a morte está aí. A morte, a doença, a dor.

E nesta batalha constante, a ocorrência da morte pode representar um duríssimo golpe na consciência dos profissionais da saúde. A morte, em última instância, significa o insucesso, o malogro. A morte é o sinal derradeiro do fracasso, uma machadada no brio profissional. A morte tem o seu quê de escandaloso. Porém, apesar do abalo que atinge os profissionais da saúde, não é possível afastar a sua presença constante, mais ou menos velada e mais ou menos esperada.

A morte é o inimigo, cuja irrealidade a colocou sob uma forma fantasmática.

Ora, a luta contra fantasmas começa por ser uma luta com a sua própria consciência e as suas representações. Apesar de se tratar de um fenómeno biológico, a dimensão com que lidamos é eminentemente cultural. O problema da atitude da classe médica diante da morte não é uma questão de pura técnica médica, mas tem a ver com valores e convicções, com as representações que a cultura e a educação foram inculcando na consciência do pessoal da saúde.

Todos os médicos têm a sua filosofia espontânea[1] que se intromete e molda atitudes e práticas. E é nos domínios de ponta da medicina que esse mundo ideológico se manifesta com mais ou menos acuidade. É quando os médicos tocam os limites extremos da vida humana (o nascimento e a morte) que as questões ideológicas e morais se soltam, como se o esgrimir de argumentos desta natureza compensasse as insuficiências técnicas e científicas nestes domínios, que acabam assim por se tornarem mais propensos à especulação metafísica.

Quando os argumentos revelam a fragilidade do edifício científico, vem em seu socorro a argamassa ideológica!

A falta de preparação para lidar com a morte, a dor e o sofrimento radica no paradigma hipocrático de curar o doente a todo o custo

Apesar da proximidade da morte, do convívio diário com a morte, nem por isso os médicos estão familiarizados com a morte. Pior do que isso. Não estão habituados a lidar com a morte e não sabem lidar muito bem com a morte.

Entre nós, é o próprio Professor João Lobo Antunes quem o reconhece: “Nunca me ensinaram a morte, e continuamos a não o fazer aos nossos alunos”. Segundo Sophie Aurenche, a pouca atenção ao problema da morte, assim como à questão da dor acabam por constituir nos cursos de medicina, a consagração de um paradigma onde durante muito tempo prevaleceu a atenção dada aos sintomas sobre a aproximação à pessoa[2].

Educados e ensinados para prolongar a vida, a morte, esconjurada, não é ensinada nem aprendida nas escolas. Do mesmo modo, ao nível do ensino da medicina e da formação dos médicos revelou-se até há algum tempo uma falta de preparação para lidar com o fenómeno da dor, desde a sua compreensão até ao seu tratamento.

A dor, nas suas dimensões mais agudas, tem sido insuficientemente tratada. Também aqui se revelaram alguns preconceitos de ordem cultural e religiosa. A não utilização dos opiáceos para aliviar os doentes de dores mais agudas, foi muitas vezes justificada com o perigo da habituação.

Tratando-se de doentes em fase terminal, o argumento é demasiado cínico. Mas esta falta de preparação em relação à morte e à dor, consubstancia uma dificuldade mais vasta: a de escutar o doente e compreender e aliviar o seu sofrimento, que não é apenas físico, tal como a dor não é apenas de ordem física.

Os médicos não estão habilitados para tratar dos doentes em fase terminal. O médico não está preparado para enfrentar as situações de morte anunciada e certa[3]. Esta impreparação grave radica no paradigma hipocrático ou, eventualmente, numa interpretação limitada do juramento hipocrático.

A história da medicina é marcada por uma preocupação fundamental dos médicos: a de curar. O juramento hipocrático definia logo aí a cura como constituindo a missão fundamental do corpo médico. O recurso a todo o transe a terapias intensivas, a necessidade de fazer tudo o que é humanamente possível, caracteriza essa preocupação que muitas vezes se torna em obsessão.

É por isso que podemos falar da existência de um paradigma da cura[4].

E é de tal modo assim que o fracasso ou o simples impasse são dramaticamente vividos pelo pessoal hospitalar, podendo, nalguns casos, resultar em situações de sintomas depressivos. Mas esta obsessão pela cura acaba também por revelar determinados pressupostos filosóficos e ideológicos que estariam por detrás da actividade médica.

De facto, procurar a cura em todas as situações releva duma preocupação com a vida humana reduzida à sua vertente biológica e encarada num aspecto puramente quantitativo. A cura, contabilizada pelo número de dias de hospitalização, é um indicador que não deixa de ter as suas repercussões económicas e orçamentais. Em tempos de crise e sob o domínio dum modelo ultra-liberal na economia e na condução da coisa pública, a cura é endeusada.

Contudo, a cura é uma tarefa que tem os seus limites, não se pode pretender vencer definitivamente a finitude humana. Só nos podemos equivocar em relação a isso, se reduzirmos a vida à sua dimensão biológica e passarmos a adorar os novos ídolos da tecnociência. Eis onde reside a suprema ilusão do paradigma da cura omnipotente: biologização da vida humana e uma crença (ou antes desejo de acreditar) positivista na omnipotência da técnica terapêutica.

Esse paradigma da cura acaba por traduzir uma visão redutora da vida humana. Nesse sentido, a Igreja Católica através dos mais variados meios tem contribuído duma forma esclarecedora, apontando como missão da medicina o benefício da pessoa e não se limitar a um mero esforço tecnológico de prolongamento da vida.

O paciente deve ser visto não apenas como possuindo um corpo, visto como uma máquina biológica com as suas regras de funcionamento, mas antes como uma unidade que contempla diversas dimensões: biológica, psicológica, social, religiosa e ideológica. E é por isso que o objectivo da medicina não poder ser apenas o de curar, recuperar fisicamente o corpo doente, mas reabilitar o indivíduo no seu todo.

É nesse sentido que vai, aliás, a própria definição de saúde para a OMS que aponta para uma situação que não se carateriza por uma ausência de enfermidades, mas antes constitui um estado de completo bem-estar físico, mental e social

[1] ANTUNES, João Lobo, Inquietação Interminável – ensaios sobre ética das ciências da vida, Lisboa, Gradiva, 2010, p. 110.
[2] AURENCHE, Sophie, L’euthanasie, la fin d’un tabou?, Paris, ESF Éditeur, 1999, pp. 112-113. Porém, assinala esta autora que o ano de 1999 representa o início duma mudança de paradigma, com a realização dos Estados Gerais sobre a saúde, onde o então primeiro-ministro Lionel Jospin anunciou uma reforma no estudos médicos, aproximando o médico do seu doente. Cf. AURENCHE, op. cit., p. 114.
[3] ABIVEN, M., C. CHARDOT, R. FRESCO, Euthanasie alternatives et controverses, Paris, Presses de la Renaissance, 2000, p. 67.
[4] BRITO, António José S. L. e José Manuel S. L. RIJO, Estudo jurídico da eutanásia em Portugal Direito sobre a vida ou direito de viver?, Coimbra, Almedina, 2000, p. 13.

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