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Sexta-feira, Abril 26, 2024

O paradigma da cura absolutiza uma vida biológica

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

Ao tornar este objectivo uma meta absoluta, a formação do médico não o prepara para uma medicina e atitude médicas que se “limitam” a confortar, com todos os sentidos que a palavra implica. O doente incurável recorda ao corpo médico a sua impotência e derrota. Por isso, não se comunica mais com o moribundo, ele é apenas tido em conta enquanto objecto clínico.

Os doentes são apreciados na medida em que fazem esquecer à equipa médica que vão morrer. Os moribundos não têm estatuto nem dignidade. O seu papel é negativo: fazer de conta que não vão morrer[1].

O paradigma da cura acaba também por afastar os médicos da realidade da morte. O paradigma da cura faz com que os médicos lidem com a doença em função da vida que é o objectivo fundamental. Apesar de rodeados permanentemente pela morte, os médicos não estão habituados a lidar com a morte[2].

O que se percebe se pensarmos que, de acordo com esse paradigma, lidar com a morte seria o mesmo que lidar com o fracasso.

Esta visão negativista da morte é o reverso duma visão heróica da profissão que tudo faz para salvar um doente – leia-se fazê-lo regressar a um estado de saúde. Por outro lado, também os hospitais se ressentem desse paradigma. Apesar de sabermos e constatarmos que cada vez mais as pessoas morrem nos hospitais[3] estes também não estão preparados, em termos de recursos físicos e humanos, para operar com a morte e com os doentes que dela se aproximam. O êxito da gestão hospitalar mede-se em função do menor tempo de permanência do doente nas suas instalações, recebendo os seus cuidados.

O paradigma da cura e a incapacidade de lidar com a morte, deixando de ver a morte como um sinal de fracasso, tem outras consequências, nomeadamente a de condenar os doentes a viverem.

Ao não aceitar um recuo neste combate com a doença, a dor e a morte, os médicos e a medicina podem fazer com que o paciente acabe por ser obrigado a viver, mesmo que nas mais sofridas e humilhantes condições.

Aqueles que, defendendo o carácter sagrado ou absoluto do direito à vida, opõem-se à eutanásia ou ao suicídio assistido e não podem ignorar que, nalguns casos, a vida e o viver surgem, para o doente em causa, como uma espécie de condenação já que, negando-lhes os pedidos para morrerem, são obrigados a suportar dores e sofrimentos intoleráveis e uma vida.

No entanto, estes seus últimos momentos (que podem, contudo, prolongar-se por bastante tempo) são de uma humilhação e degradação totais e que teremos dificuldade em classificar como vida.

A história de Dax Cowart é, sob este ponto de vista, elucidativa. Vítima de explosão que lhe provocou graves queimaduras, Dax Cowart foi, durante catorze meses, mergulhado todos os dias pelos enfermeiros num tanque de solução de Clorox que esfregavam na sua pele queimada. Várias pessoas seguravam o seu corpo atrofiado durante essas sessões. Levavam-no de volta para a cama onde gritava até desmaiar.

Durante esse tempo implorou a morte. As suas mãos foram amputadas, a única pele que lhe restou sem danos ou que não foi usada para enxertos foi a da planta dos pés. Eram os dedos dos pés que lhe permitiam sentir alguma coisa. As orelhas sofreram danos e os seus olhos foram retirados.

Depois de receber alta hospitalar tentou matar-se várias vezes. A medicina e os médicos mantiveram-no vivo, mas será possível falar de vida?

Dax Cowart foi, de facto, condenado a viver e todos os dias viveu (viveu?) essa condenação.

“O mundo da medicina que contrariou o seu desejo de morrer continuou a fazer os seus negócios. Os recursos de milhões de dólares disponíveis para o manter vivo não estão disponíveis para o ajudar a viver a vida que lhe ficou”[4].

A vitória da medicina e dos médicos transformou a sua vida numa pena bem pesada.

Não só devemos reconhecer que o médico não está preparado para lidar com a morte, como podemos afirmar, como Michel Cavey, que ao longo da sua carreira só muito raramente é que o médico é confrontado com a morte[5].

Portanto, é ilusória a competência de especialista de que o médico se arroga em relação à matéria da morte, pelo que se segue que também “não devem possuir uma grande competência para falar de eutanásia”[6].

Porém, se fosse assim mesmo, estaríamos diante duma grande tragédia em termos do debate público.

[1] François de CLOSETS, La Dernière Liberté, Paris, Fayard, 2001, p. 114.
[2] Jacques POHIER, A morte oportuna – o direito de cada um decidir o fim da sua vida, Lisboa Editorial Notícias, 1999, p. 33.
[3] Segundo Jacques POHIER, em França, nos finais do século XX, setenta por cento das pessoas morriam nos hospitais- Cf. Jacques POHIER, op. cit., p. 34.
[4] Christine WICKER, «Condenado a Viver», in Robert BAIRD e Stuart E. ROSENBAUM (orgs), Eutanásia – as questões morais, Venda Nova, Bertrand Editora, 1997, p. 26.
[5] Michel CAVEY, L’Euthanasie – pour un débat dans la dignité, Paris, L’Harmattan, 2005, p. 11.
[6] Michel CAVEY, op. cit., p. 12.

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