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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Roger Ailes – Alguém sabe quem era este senhor?

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Roger Ailes, que nos deixou há dias, era um dos mais importantes e conhecidos “spin doctors” mundiais. Não ficava atrás do genial Karl Rove, o homem que – dizem – inventou George W. Bush e que foi o arquitecto das suas campanhas eleitorais.

Ailes vinha de longe, dos tempos das campanhas de Richard Nixon, de quem dizia, afinal, que não era apresentável, justificando, assim, o seu árduo (e eficaz, diga-se) trabalho para o promover. Esteve também com Ronald Reagan, George Bush e até Jacques Chirac. E – dizem também – aconselhou informalmente Donald Trump, de quem era próximo.

Quem o diz é Maggie Haberman e Ashley Parker, em Agosto de 2016, no “New York Times”, em título de artigo: “Roger Ailes is advising Donald Trump ahead of presidential debates”  O homem forte da FOX deixou-nos, no dia 18.05, aos setenta e sete anos. E com ele até poderíamos dizer que morre um pouco do velho “spin doctoring”, tão importante para ganhar eleições e tão eficaz na manipulação da comunicação ao serviço das lideranças políticas que pretendem chegar rapidamente ao poder. Um exercício executado a partir dos centros do “broadcasting”, da “mass communication” numa lógica puramente instrumental. Para compreender isto basta ver um filme como “Manobras na Casa Branca” (“Wag the Dog”), com os excelentes Robert de Niro e Dustin Hoffman.

Quem era Roger Ailes?

Ailes foi o fundador e o CEO da Fox News, um novo estilo de comunicar e uma filosofia claramente assumida: tratava os adversários quase com a lógica do inimigo, era brutal nas campanhas negativas, como se pôde verificar, por exemplo, na campanha contra Mike Dukakis, candidato a Presidente (contra George Bush) e governador de Massachusetts. No artigo do “NyT” é usada esta expressão para o definir com exactidão: “a pit bull style”. A campanha de Bush apresentou-o como responsável político e moral de um assassinato cometido por um preso negro (Willie Horton) em liberdade no quadro de um programa de reabilitação social.

Claramente militante da causa republicana, Roger Ailes é assim definido por Giancarlo Bosetti, num interessante livro, “Spin. Trucchi e tele-imbrogli della política” (Venezia, Marsilio, 2007, p.184 ): “talvez o homem de televisão mais potente do mundo ocidental (…), Ailes é a televisão comercial americana vencedora, é a televisão política vencedora, é o spin, é a ideologia, é o telejornal, que é o instrumento vencedor da cable TV».

Mas Ailes foi afastado da FOX devido à denúncia de assédio sexual por parte de antigas colaboradoras. Saiu, mas ao que se sabe, continuou activo no spinning, informalmente. Com Donald Trump, na campanha, onde parece haver claros sinais da sua marca. Mas o “pit bull style” já fora, há muito, visível também na cobertura da guerra com o Iraque, na qual os jornalistas, mais do que fazerem a cobertura da guerra, faziam eles próprios a guerra. Ficou célebre um dos jornalistas da FOX que disse, armado, que “se sentiria honrado em matar pessoalmente Osama Bin Laden”.

Roger Ailes representa, pois, como nenhum outro o jornalismo militante, “advocacy”, onde o outro é visto como inimigo a aniquilar, numa transposição simbólica da lógica da guerra para a lógica da comunicação ou mesmo da informação. Uma espécie de hino à teoria schmittiana da política, onde a dialéctica do amigo-inimigo define a essencialidade da política, tal como a dialéctica entre o bom e o mau a da moral e a dialéctica entre o belo e o feio a da estética. Esteve, por isso, sempre do lado dos conservadores e representa, deles, o seu lado mais duro. Um bom par, esse, o de Roger Ailes e Karl Rove!

As campanhas negativas e o spinning

As campanhas presidenciais americanas só podem ser lidas a partir de um código que se centra na personalização extrema da política – e, de resto, o sistema presidencialista ajuda a isso -, evidenciando não tanto o lado bom dos candidatos como o lado mau dos adversários. Que o diga John Kerry quando se confrontou com George W. Bush. Uma campanha exemplar a todos os títulos, conduzida com maestria e radicalismo por Karl Rove. Ficaram célebres os ataques rasteiros e grosseiros a Kerry pilotados pela Casa Branca, como ficou célebre o episódio da aterragem de Bush no porta-aviões Lincoln, a receber, em 2003, os soldados regressados do Iraque e do Afeganistão, procurando elevar a Presidente Top Gun um Bush que mal tinha feito o serviço militar. Também Obama soube o que era o “spinning” agressivo, com os ataques pessoais de que foi vítima durante a campanha de 2008.

Mas o “spinning”, com as profundas mudanças que tem vindo a conhecer, em virtude do crescimento exponencial da rede e das redes sociais, continua bem vivo na política, com permanentes campanhas negativas que são lançadas para a opinião pública. A mais recente versão tem vindo a centrar-se nas “fake news” e na “post-truth politics”, de mais que velha e datada inspiração, pois foi isso mesmo que, afinal, os velhos “spin doctors” sempre fizeram. Novas palavras para velhos métodos. Mas esta tendência tem cada vez mais espaço para crescer com a expansão do subsistema comunicacional e a dificuldade crescente (correspondente a exigência intelectual e a capacidade de selecção das fontes) do cidadão em mover-se na selva de informações que circulam no gigantesco espaço público.

Uma situação que exige, pois, um fortíssimo enrobustecimento da cidadania, capaz de selecionar boa informação e de intervir, com os novos meios, como protagonista no espaço público. As antigas referências seguras são cada vez mais inseguras e terreno propício a autênticas batalhas campais entre os gigantes do novo e do velho “spinning”.

Dificuldade em seleccionar a informação

A circulação da informação tornou-se torrencial e a dificuldade em seleccioná-la cada vez maior, tendo inclusivamente aparecido forças políticas que hoje já funcionam quase exclusivamente como complexas agências de comunicação que actuam no terreno dos media tradicionais, mas sobretudo no plano da rede e das redes sociais. O caso italiano do M5S é paradigmático, porquanto tem por detrás uma agência de comunicação para a rede e de estratégia digital, a “Casaleggio Associati”, do malogrado Gianroberto e do seu filho e sucessor Davide Casaleggio. Mas também “Podemos”, em Espanha, funciona cada vez mais como uma complexa e poderosa agência de comunicação ao serviço exclusivo da política.

Numa recente intervenção feita numa conferência internacional promovida pelo Centro de Investigação que dirijo, o CICPRIS, o Professor da Universidade Complutense de Madrid Andrea Donofrio usou, referindo-se ao “Podemos”, duas expressões que retive com muito interesse: a política de hoje, disse, passou “das sedes para as redes”, o que significa precisamente passar do plano orgânico e territorial para o plano comunicacional e digital; e, referindo-se ao conceito de democracia praticado por este partido/movimento, propôs o conceito de “democracia ratificativa” para indicar aquela democracia que está pensada para ratificar permanentemente o pensamento e as fórmulas comunicados à cidadania pelo líder máximo, Pablo Iglesias.

Todo este movimento que se está a verificar poderá ser bem compreendido se regressarmos a uma reflexão sobre o papel dos clássicos “spin doctors”, como Roger Ailes, Karl Rove ou Alastair Campbell (o “spin doctor” de Tony Blair), na conquista e na conservação do poder. A linearidade e a clareza da sua acção no campo comunicacional (comunicação instrumental) ajudar-nos-á a compreender melhor a natureza do “spinning” hoje neste gigantesco espaço intermédio para onde já migraram todos os meios de comunicação e onde se processa uma comunicação de novo tipo a que, com um conceito muito bem conseguido, Manuel Castells chamou “mass self communication”, comunicação individual de massas. Uma comunicação que, sendo de massas, interpela directamente o activismo de cada utilizador da rede e das redes, seja na política seja na comunicação. E é aqui mesmo, numa cidadania mais activa e individualizada, que, no meu entendimento, residirá o futuro da política. Que urge compreender e antecipar.

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