Diário
Director

Independente
João de Sousa

Quinta-feira, Abril 25, 2024

Com um Anjo diante dos olhos

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

anjo-melancolico-destaque

Desde a leitura de Chesterton, há muitos anos, que desejei entender o ensaio de uma forma nova, por ter descoberto a saborosa capacidade que este género de escrita permite como efeito persuasivo. Talvez menos no que produz no leitor e muito mais no que opera no próprio autor, entenda-se, no ensaísta, pois é uma forma de percorrer, em experiência e aventura, um lado científico que a outros exercícios literários está interdito.

A musicalidade do ensaio

O ensaio é musical – ensaiam-se sempre os trechos antes de interpretados (ou “executados”, expressão tremenda, bélica, castreja); ensaiam-se as hipóteses científicas que devem mostrar que o seu autor sabe relacionar o problema formulado com as teorias científicas existentes e os argumentos possíveis e enunciados.

Escrever ensaio é portanto esse atrevimento – e escrever, com pretensão de utilizar elementos do mesmo género, um ensaio sobre um ensaio é como levar às costas do grande avião o pequeno aeroplano que, de um modo lúdico, partilhará o mesmo ar, sendo que um voa e o outro respira o que lhe for possível e for sobrando.

É também corajoso e atrevido o livro que agarrámos como objeto maior da nossa curiosidade ao apresentar-se, logo na capa, como Ensaio. Poucos serão assim tão corajosos. Este de que falo é um deles. Ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamim, é o subtítulo. A encimá-lo um atraente O Anjo Melancólico serve-nos como título.

O conteúdo já foi, há anos, uma dissertação de mestrado. Isso torna-nos apreensivos na leitura, porque há sempre nas redações de mestrado o formato híbrido: tem de agradar aos juízes que classificarão a obra, aos leitores da mesma, se existirem depois, e não trair, sobretudo, aquele que a escreveu e que, normalmente, é mesmo o único que domina o tema desenvolvido.

Depois, para nosso descanso, percebemos que a Autora – é uma autora, sim! – teve a grande generosidade de refazer (em palimpsesto) todo o objecto: por cima da dissertação fez-nos o gosto de compor uma camada capaz de tornar acessível a um público mais vasto aquilo que antes um arguente principal e os seus companheiros de inquisição tentaram, se calhar em vão, compreender e classificar.

A obra

maria-joao-cantinhoO Anjo Melancólico é de Maria João Cantinho. É mesmo dela. Como um objeto possuído. Sendo seu, ela está lá tal como a conhecemos: sábia, serena, impetuosa em certos momentos, exultante de sensibilidades.

O pensamento de Walter Benjamim (Walter Benedix Schönflies Benjamin, filósofo, sociólogo e – ele também! – ensaísta) não é para quem não seja, previamente iniciado. Quantificou as correntes estéticas e filosóficas da segunda metade do século XX, partindo da crítica, à moda kantiana, como profunda forma de reflexão. Estabeleceu fronteiras, entre a cultura e a economia, e ergueu entre elas um sistema afirmado pela linguagem, pela história, e pela sua interpretação da teologia e do messianismo (sempre com a tentação do impossível: reconciliar aspirações religiosas e lutas políticas. Não esquecemos, sobretudo, que Benjamin foi testemunha e vítima de duas guerras mundiais, morrendo enquanto fugia da segunda).

Há quem leia Benjamin como o arquiteto de um esquema teórico que reformularia, de modo extremamente original, um paradigma de origem religiosa: a história humana seria a perda de um paraíso originário, determinada pela queda na temporalidade e na incomunicabilidade (Babel, como consagração linguística do pecado original); a transformação dessa história decadente e o restabelecimento da harmonia primitiva seriam assim a única tarefa autêntica na qual os homens deviam empenhar-se, por uma prática (revolucionária) ou/e por uma teoria reparadora da injustiça.

walter-benjamin“Exosofia”

Maria João Cantinho não escolhe o caminho fácil; e pensa. Pensa sobre o pensador e procura extrair-lhe a profundidade do conceito de alegoria na sua obra.

Maria João Cantinho tem uma daquelas relações sensuais e excecionais que por vezes tornam os casais verdadeiras lendas: ela e Walter. Uma cumplicidade fundindo sombras, aparecendo juntos à luz das revelações. Maria João é de uma teimosia intelectual fascinante. Mesmo nos momentos de inquietação – que, densos também, são tantos em Benjamin – ela prossegue e persegue. Para isso, recorre ao rigor terminológico e a uma disponibilidade que só pode resultar de uma grande generosidade: só aprendemos alguma coisa quando não impomos o que vamos aprendendo ao que podemos aprofundar mais adiante.

Sintética, fundamentada, bem orientada no percurso, a autora soma a tudo isto uma personalidade própria. E se o tema é inquietante – alegoria em Benjamin! – a pacificação que a leitura de O Anjo Melancólico permite equivale a um dever cumprido: só há ensaio quando o destinatário se regala e renova as suas dúvidas. Benjamin é um labirinto sobrevalorizando convicções que sendo de época a transcendem. Maria João guia-nos no labirinto – por ter a cumplicidade de Dédalo ou simplesmente por confiar intensamente que pode descobrir saídas – levando-nos com ela.

Exegese

Como disse outro Ensaísta, Eduardo Prado Coelho, Cantinho é preciosa. Aliás, Prado Coelho, no Jornal Público, de 6 de março de 2004, foi igualmente precioso. Num artigo intitulado Nós Fomos Esperados Sobre a Terra – sem mais teorias, é um título de formato messiânico, ao sabor Benjaminiano – , assevera: “Escrito com grande sensibilidade, que não exclui um incessante rigor terminológico, O Anjo Melancólico, é uma iniciação, mas ao mesmo tempo uma leitura pessoal, em muitos aspetos sugestiva e tonificante, de Walter Benjamim”.
Podemos dizer que é auto-iniciação – e, a um mesmo tempo, iniciação de cada um de nós, os eleitos que podem ler o livro.

anjo-melancolicoNessa auto-iniciação, leitura pessoal, Maria João Cantinho, cumpridos os rituais de iniciação, atreve-se aos de passagem: mergulha no denso, sem deixar de ser densa, mas partilhando e, de uma forma repetidas vezes didática, dissipando brumas, dessas que se encontram sempre nos pensamentos mais intensos, e que só dissipadas lhes garantem a continuidade (naqueles que , só assim, passam a entendê-los).

Os livros não se explicam assim, com olhares escritos dos seus leitores. Exigem uma leitura para que sejam realmente adquiridos. É a sugestão: ler O Anjo Melancólico da Filósofa Maria João Cantinho, a mesma que nunca abandonou Benjamim e continua a ensaiar repetidos olhares sobre a sua obra. Neste livro, a conclusão está, para o leitor, quase no cais de acolhimento da tristeza. Não direi qual é o final, apenas que circunscreve a visão alegórica de Benjamim onde ela se oculta. Isso daria novos ensaios de interpretação.

O Sagrado e o Profano

Em época de nacionalismos e de fundamentalismos, como a nossa, não só é obrigatória a leitura de Walter Benjamin, como a do entendimento da sua alegoria – e dessa força como esperava ver um Messias interromper a história e livrar, dissolver, resolver o antagonismo do profano e do sagrado.

Isto equivale a dizer que devemos ser iniciados neste tesouro do intelecto. O Anjo Melancólico é a ajuda, logo, também é obrigatório.

Para acabar como se começou este texto, a evocar G.K. Chesterton – e só porque a ele aludimos, não pelo seu valor relativo – citamos quando disse que “o ensaio é a única forma literária que confessa, através da sua designação, que o ato precipitado a que chamamos escrita é, na verdade, um salto no escuro”. Ficamos gratos a Anjos que iluminam, mesmo melancólicos, desde que sejam sábios. É o caso.
Este artigo respeita o AO90

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

Sobreviventes a Salazar

Mentores espirituais

A História da Pide

- Publicidade -