Diário
Director

Independente
João de Sousa

Quinta-feira, Abril 25, 2024

Alice Capela

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

N. 1941

Uma extraordinária história de vida clandestina na Resistência, que começou na infância e só terminou com a Revolução: décadas de coragem e dedicação ao trabalho clandestino nas tipografias do PCP e cinco anos passados na prisão de Caxias. De cada vez que montavam uma casa clandestina, os funcionários do PCP tinham de inventar um novo perfil de vida familiar. Alice, levada para a clandestinidade com 12 anos, viu interpretar e assumiu muitos personagens. Com 13 anos viveu o primeiro duro golpe: o pai foi preso, muito torturado e condenado a nove anos de cadeia. Sozinha com a mãe, fugiram para um ponto de apoio do partido e, pouco depois, tiveram de se separar. Sem descanso, Alice seguiu na luta, foi presa, muito torturada pela PIDE, impedida de contactar o filho e o marido e, por fim, condenada em Tribunal Plenário a anos de prisão. A vida de Alice está entrelaçada com a história das tipografias clandestinas do Partido Comunista Português. Alice Capela é uma mulher doce e forte.

Biografia

Maria Alice Diniz Parente Capela

Maria Alice Diniz Parente Capela nasceu (frágil) na Póvoa de Santa Iria, em 1941, filha e neta de militantes do PCP. O pai, operário, era militante, assim como a mãe e a avó. Apesar dos seus escassos meios de subsistência, tudo o que tinham era disponibilizado ao partido e a sua casa era um “ponto de apoio” para a luta clandestina. O pai de Alice entrou para a clandestinidade quando ela tinha 10 anos. A mulher e a filha segui-lo-iam um ano depois. Aos 12 anos, Alice já estava numa “casa do partido”:

Éramos três filhos e não pudemos ir todos. Como eu era fraquita dos pulmões fui eu, com grande dor da minha mãe”

A avó de Alice, também operária, ficou com os outros dois netos, de 13 e sete anos[1].

Aos 16 anos, em 1957, começou a trabalhar numa tipografia clandestina. Em 1958, foi com a mãe para uma «casa» onde também vivia Joaquim Carreira[2]. Depois da prisão deste, foi viver sozinha com Adelino Pereira da Silva. Quando tinha 18 anos, Dias Lourenço, histórico dirigente do PCP, levou-a para viver numa casa com Adelino Pereira da Silva e disse-lhes que simulassem um casal. Ao fim de três meses eram companheiros de facto[3]. Seguiu-se o inevitável numa altura em que não havia ainda a pílula e a contracepção era bastante falível: Alice engravidou. Em 1960 teve o seu único filho, Alfredo. Um parto em casa, com grandes dificuldades.

Vida nas casas clandestinas

Nas casas clandestinas por onde passou, Alice (pseudónimo Olga, em homenagem à companheira de Carlos Prestes) teve como tarefas principais apoiar o trabalho dos camaradas da direcção do partido, dactilografando textos e colaborando com artigos para as edições “3 Páginas” e “A Voz das Camaradas”. Foram-lhe criadas condições especiais para estas tarefas. Os camaradas arranjaram-lhe uma máquina de escrever e fizeram uma caixa em madeira com tampa amovível e com um visor em vidro (acolchoada interiormente para evitar a propagação do barulho), onde se ajustava a máquina, ficando apenas de fora o teclado, assente numa base também acolchoada, e o manípulo para fazer correr o carrinho do teclado.

Outra das tarefas de Alice nas tipografias era a de revisora de provas, após a impressão da folha ou folhas de prova.

Em Janeiro de 1963, ela e o companheiro desconfiaram que estavam prestes a ser descobertos[4] e saíram precipitadamente da casa que habitavam, levando as roupas e os papéis importantes. Porém, chegados à casa nova, Adelino deu conta de que esquecera documentos importantes e, embora contrariado pela companheira, voltou atrás, sendo então preso. Após a prisão dele, durante todo o ano de 1963, Alice passou por várias casas “pontos de apoio”, até acabar por voltar a juntar-se à mãe numa casa que funcionava como tipografia . Nessa casa ilegal da Damaia residiram Alice, o filho de dois anos, a sua mãe, Aurora Piedade Diniz, e um camarada, Duarte Pinto.

Adelino Pereira da Silva, a mãe de Alice Capela, a funcionária do PCP Aurora Dinis e o filho

Em 1964 mudaram para a Charneca do Lumiar, onde funcionava uma outra tipografia clandestina e foi então que Alice ensinou Duarte a compor e imprimir. Ali ficaram nessas actividades – o filho, com quatro anos, “estava muito bem instruído, e muito cedo percebeu os cuidados que tinha de ter” – até que, em Dezembro de 1964, foram os três presos[5].

Prisão

Alice, na sede da PIDE, em Dezembro de 1964, quando foi presa

Levados para Caxias, ela e a mãe foram colocadas juntas, numa mesma cela e com o menino. Alice não largava o filho, levando-o até para os interrogatórios. Chegou o dia que ela receava: a PIDE avisou-a de que se não arranjasse ninguém para ficar com ele, o enviavam para um asilo. Alice não sabia a quem o entregar, já que todos os familiares próximos estavam presos: o pai da criança (Adelino), os avós maternos e os avós paternos. Contactou o irmão mais velho, já casado, pediu-lhe que ficasse com o pequeno e ele assentiu. Passados 15 dias o tio trouxe-o à visita, no parlatório, mas Alice não foi autorizada nem sequer a dar-lhe um beijo.

Alice Capela com o filho Alfredo

Disse-lhe que tinha muitas saudades e ele respondeu: Já conheço o paizinho. O paizinho é bonito”

O tio tinha-o levado a Peniche para conhecer o pai.

Torturam-na, mas Alice não falou, não disse nada. 

Estive cinco dias e cinco noites na tortura do sono. Não me podia sentar, nem deitar, tinha alucinações, via uma carantonha a sair da parede e depois via o meu bebé e estava a embalá-lo. Desatei aos gritos e eles enfiaram-me uma toalha molhada na cabeça. Eu gritava “assassinos, assassinos” e eles esbofeteavam-me, davam-me murros, atiravam-me contra a parede, insultavam-me, “puta, cabra”, diziam que eu estava amantizada com fulano de tal e que já tinham dito ao meu companheiro. “Ao teu filho vais vê-lo morto” e eu pensava nele (…). Queria ficar louca para aquilo terminar. Depois mudaram de táctica, apareceu um tipo que era a cara do Adelino, eu sabia que era um pide, mas ele com muitas amabilidades, a ver se me fazia falar, . Sempre disse que tinha ideia de que se fosse presa não falaria nunca, que tinha a certeza que não ia falar. O que me dava força era ouvir aqueles gritos dos nossos camaradas presos em Caxias que viam que eu estava a sair e que não tinha falado”

O sofrimento de Alice deixou-lhe marcas profundas[6].

Estava presa no Forte de Caxias há um ano e meio quando, no dia 6 de Abril de 1966, casou com Adelino Pereira da Silva, então a cumprir pena na Cadeia do Forte de Peniche. A ditadura fascista não reconhecia como legítimos filhos gerados fora de um casamento, pelo que ou Alice e Adelino oficializavam a sua união ou não podiam ver o filho. Tivemos que nos casar por procuração, ele na prisão de Peniche, eu na prisão de Caxias.”

Não se viram no dia do casamento. Só depois de casar puderam começar a corresponder-se. As cartas, entre a cadeia de Caxias, onde ela se encontrava presa e o Forte de Peniche, onde ele estava, eram quase exclusivamente sobre o filho, Alfredo, que foi andando de casa em casa, acolhido por familiares e amigos.

Depois, já em liberdade

Alice, o marido, Adelino, com quem casou por procuração, ela na prisão de Caxias, ele na prisão de Peniche, e o filho, Alfredo, só voltaria a juntar-se em 1970.

Alice esteve presa cinco anos, saiu em liberdade condicional em Setembro de 1969 e, só depois, Adelino[7]. Quando foi libertada o filho tinha quase 10 anos.

Foi muito estranho, não sabia o que fazer, apanhei um táxi para Entrecampos e de lá o comboio para a Póvoa de Santa Iria, e falava alto com as pessoas no comboio, era a hora a que regressavam do trabalho, dizia o que me tinha acontecido… Bati à porta, o Alfredo vem a correr e agarrámo-nos ao pescoço um do outro e rodámos, rodámos, rodámos, ele dizia: «mãezinha, mãezinha, há tanto tempo que eu não tinha mãezinha»”

Corriam os últimos meses de 1970 quando Alice, Adelino e o filho se juntaram novamente, agora na legalidade, e puderam ter uma vida normal. Após a sua libertação, Alice ficara a viver na Póvoa de Santa Iria e, após a libertação de Adelino, foram ambos residir para o Barreiro.

Deu-se o 25 de Abril quando iam passar de novo à luta clandestina. Já não foi preciso.

[1] Como eu era fraquita dos pulmões fui eu, com grande dor da minha mãe. (…) Foi um grande sofrimento para os meus irmãos, na cabeça deles a minha mãe escolheu-me a mim. Compreendo-os muito bem, os meus irmãos e todos os filhos de funcionários que tiveram de ser separados dos pais foram jovens que sofreram muito.”

[2] Joaquim Augusto da Cruz Carreira foi provavelmente o homem que manteve, durante mais tempo, ininterruptamente, uma tipografia clandestina a funcionar. .

[3] Dias Lourenço tinha pedido a Adelino Pereira da Silva que montasse uma casa clandestina, e explicou-lhe que vinha morar com ele uma mulher. Quando chegou à rua combinada, Adelino Pereira da Silva viu ao longe Alice com Dias Lourenço. E ela, ao vê-lo, pensou “que não podia ser aquele rapaz, não devia ser, seria demasiada sorte” – achou-o bonito.

[4] O traidor que denunciou Adelino e outros membros do PCP estava ligado ao sector estudantil. A PIDE tê-lo-á enviado para uma das colónias.

[5] Era a madrugada de 13 de Dezembro de 1964 quando lhes batem à porta. À pergunta «quem é?», do lado de fora responderam que era o leiteiro, mas «Àquela hora não podia ser, percebemos logo do que se tratava e começámos a queimar os papéis. Nisto, nove homens arrombam a porta com um pé de cabra e apontam-me uma arma, “Mãos no ar, somos da PIDE”. Eu e a minha mãe começámos a gritar quem éramos e o que se estava a passar para os vizinhos ouvirem. Mas eu não queria fazer muito barulho para não assustar o meu pequenino, de olhos esbugalhados a olhar para aqueles homens armados».

[6] Não gosto de me lembrar disto, são memórias muito duras. Eu preparei-o, fazia-lhe um grande teatro, dizia que nos íamos encontrar depressa. No momento da separação, nas escadarias de Caxias, (…) ele gritava, os olhos cheios de lágrimas, deu um pontapé ao pide, que lhe respondeu com uma bofetada e eu gritei “bata-me a mim, mas não bata ao meu filho” e (…) dizia-lhe: “a mãezinha adora-te, depois quando sairmos daqui vamos fazer uma festa e a mãe vai contar-te muitas histórias”. Era pelo meu filho que fazia aquilo. Subia a escada e ouvia os gritos do Alfredo ao fundo”

[7] Julgado em Tribunal Plenário foi condenado a 4 anos de pena e às famigeradas “medidas de segurança” (de seis meses a 3 anos, prorrogáveis), que tiveram início em 1967. Foram sete longos anos de prisão, no Aljube, em Caxias e em Peniche, até à sua libertação em 1969.

Dados biográficos:

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

Artigo anterior
Próximo artigo
- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

Sobreviventes a Salazar

Mentores espirituais

A História da Pide

- Publicidade -