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Quinta-feira, Abril 25, 2024

O esforço enorme de entender o que se passa connosco

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Espero que as meninas e os meninos que sabem descarregar Apps dos seus telemóveis, não sejam daqui a uns anos, a multidão manipulada que os Trump tanto querem.

A convite da Câmara Municipal de Lisboa, pela iniciativa da vereadora do pelouro da Educação, Catarina Albergaria, que há anos muito estimo – digo-o claramente para que fique registo em voz alta de prosa, pois há sempre a tentação de encontrar compadrio onde só há amizade que, no caso antecede, em muito o convite, singelo e festivo – visitei um punhado de escolas em Lisboa, durante uma semana, em mais uma experiência didática e saborosa.

É comum andar nisto. Os convites são às centenas e tenho acedido ao longo dos anos a “andar na estrada” dentro do que me é possível (e nem sempre me é possível o tanto que desejo). Faz parte de uma militância cultural. Leva-se ideias para recolher outras, ausculta-se os pulmões da Nação e aprendemos o tamanho do que somos – quase sempre menor do que aquele que nos atribuímos.

Os convites partem de Ministérios, Câmaras, Juntas, Centro Culturais, Bibliotecas Municipais ou locais, de Escolas, Associações, de amigos, professores em grupo ou isolados, de tantos que querem bem ao País dando-lhes o lado que mais precisa: pensamento.

Também é tradição que sempre que “entra” um Ministro novo ele peça, aos escritores em geral, que nos disponibilizemos – e fica muito admirado o Ministro “novo” ao saber que já somamos anos nessa lida. É uma lida social e política, entendo-a assim. Dirão outros que é económica, sendo que, na verdade, em muitos casos levamos livros para oferecer e não cobramos honorários, o que levaria a uma outra longa reflexão.

Esta semana cultural fez-me pensar em muitas coisas. Isto que digo e outras mais. Que o querido filósofo português José Gil se antecipou às razões maiores da nossa autenticidade quando, em setembro de 2014, traçava visões pessimistas do que éramos e seríamos, consagrando que a presença da Troika em Portugal aniquilou a capacidade de sonhar dos portugueses.

Hoje sabemos que a verdadeira Troika aniquiladora de sonhos era constituída por um primeiro-ministro, pelo seu vice e pelo seu (depois sua) responsável pelas Finanças. Roubar os velhos, obrigar os novos a sair do país e tratar os que ficaram como propriedade de interesses económicos estrangeiros e lixo não reciclável, não permite quimeras, ou sonhos destinados.

É certo que já Virgínia Wolf, no início do século XX, dizia que o «caráter humano mudou». Melhor, afirmava que «houve uma mudança em todas as relações humanas – entre patrões e criados, maridos e mulheres, pais e filhos. E quando se modificam as relações humanas, ocorre a mudança na religião, na conduta, na política e na literatura».

Tornando o raciocínio ameno, introduzindo-lhe acordes do José Mário Branco, diria eu, com Camões na letra que o mundo é composto de mudança. Troquemos-lhe as voltas, então. (O tempo cobre o chão de verde manto, que já coberto foi de neve fria…).

Que já não se encontram crianças como as que eram – é verdade. Estão mais disponíveis para imediatismos, mundanidades, são mais rápidas em certas conjugações e muito lentas noutras. Veem o mundo por caixinhas. E já não são as dos ecrãs dos televisores e cada vez menos os dos computadores. Têm uma espécie de mundo na palma da mão e pensam em telemóveis como os seus ancestrais pensavam em deuses (ah, é verdade, esta andança pelas escolas inseria-se na Semana da Harmonia Religiosa).

Já várias vezes ao estudarmos História, Cultura e atitudes sociais na História e na Cultura – ideias e comportamentos, sobretudo – verificamos como a sociedade rompe com o passado e abandona as estruturas sociais, políticas, económicas e religiosas tradicionais. Fá-lo de vez em quando. Precipita-se em transformações – mesmo quando, paradoxalmente, é resistente às mudanças.

Aquilo a que assistimos hoje – numa nova sociedade ocidental de extremos, extremismos e extremistas, de populismo e populistas, de nacionalismos assustadores porque não têm o ser humano como centro mas um desprezo absoluto pelo que é humano – é um triunfo não tanto da ignorância mas de aspetos fundamentais que ignoramos.

Oferecemos horizontes infinitos aos nossos filhos – sem lhes mostrar a qualidade do terreno onde devem por os pés e a beleza intensa dos avós que deram a vida e a glória para que hoje pudéssemos olhar para os telemóveis em liberdade.

Desde finais do século XIX, inaugura-se uma nova fase de vida constituída pelo progresso económico e industrial, a revolução nas comunicações, o crescimento demográfico, a democratização do acesso aos vários níveis de ensino, a hegemonia dos valores burgueses, republicanos e liberais.

Novas ideias filosóficas e novas doutrinas políticas viriam a influenciar o pensamento ocidental e a ter repercussões ao longo de todo o século XX. Alteraram-se os estilos de vida com consequentes modificações nos hábitos e gostos culturais. A ciência desempenhou um papel fundamental nas melhorias das condições de vida das populações e revelou um interesse crescente nas questões sociais, que muitas vezes se cruzavam com a esfera do poder político.

Mas esse desenvolvimento assustou-nos. Porque o que devia ser para todos ficou cada vez mais para alguns.

A criação de um novo homem, libertando-o da sua animalidade e sublimando a condição humana – parece uma utopia diante de algumas criações que se nos deparam. Espero que as meninas e os meninos que sabem descarregar Apps dos seus telemóveis, não sejam daqui a uns anos, a multidão manipulada que os Trump tanto querem. É por isso que continuo na estrada, no esforço imenso de perceber o que se passa connosco.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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