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Sexta-feira, Maio 3, 2024

Media e Suicídio: Como se noticia e como deveria noticiar-se

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O papel dos media na questão do suicídio tem sofrido mudanças ao longo dos tempos. Em termos históricos, o início poderá situar-se na onda de suicídios relacionada com “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, livro do escritor alemão Goethe, sobre o desgosto amoroso de um jovem apaixonado, no século XVIII. Com o surgimento de medium como a televisão e as plataformas de internet, o panorama alterou-se e tem vindo a ser estudado um pouco por todo o mundo.

Já na viragem para o séc. XXI, a Organização Mundial de Saúde editou um manual para profissionais da comunicação social. A principal preocupação é o efeito de imitação, isto é, o processo pelo qual um suicida exerce um efeito de influência sobre suicídios que venham a acontecer de seguida. O manual fala do impacto da cobertura de suicídios pelos media, reconhecendo que “ a maioria dos suicídios não é mostrada” e que “os casos mostrados nos media são quase que invariavelmente atípicos ou incomuns”. A publicação afirma que mostrar os suicídios como típicos “perpetua ainda mais a desinformação sobre o suicídio” e que “alguns tipos de cobertura podem ajudar a prevenir a imitação do comportamento suicida”.

A propósito, o psicoterapeuta Vasco Catarino Soares, falando ao Tornado também como consumidor de notícias, destacou a tendência dominante de tratar o suicídio como tabu, embora acrescente que “os meios de comunicação oscilam entre o sensacionalismo, a espectacularidade e o ‘horror’ do suicídio, com o objectivo de cativar para a notícia, e outras vezes com muita reserva quase em modo tabu. Este facto deve-se especialmente ao tipo de meio que veicula a notícia (meios mais sensacionalistas e meios que se vendem como mais sérios). Não sendo o que acontece frequentemente, também há as notícias que, não fugindo a noticiar o suicídio, procuram não explorar a parte mais sensacionalista (o método usado, o local, etc.).

Quanto ao risco de imitação do qual fala o manual publicado pela OMS em 2000, Vasco Catarino Soares admite que as opiniões dividem-se: “há os profissionais que defendem que mesmo quando se noticiam suicídios, há muito mais leitores (uma maioria esmagadora) que não se suicida, pelo que o suicídio não se deve às notícias mas mais à fragilidade ou predisposição dos indivíduos para o suicídio”. O director clínico da Insight esclarece que “apesar de o suicídio ter na sua génese razões e motivos diversos, o que tem em comum é a falta de redes de contacto e apoio, que levam a pessoa a não encontrar outra saída que não o suicídio”.

Ainda de acordo com o psicólogo, “o enfoque deve ser o de informar e não o de causar ‘horror’ (sensacionalismo). Neste papel de informar deve mostrar-se as razões que levam ao suicídio e que formas a sociedade tem (se não tem, deve criá-las) para ajudar pessoas em aflição, que podem levar o indivíduo a não ter de optar pelo suicídio. Nunca as notícias devem promover a ideia de que o suicídio é um pecado e é um acto de cobardia ou egoísmo, pois essa forma só leva a mais tabus, ignorância, a culpabilizar os suicidas e a envergonhar as suas famílias”, sublinha.

Numa análise mais detalhada ao nível académico acerca do modo como o suicídio é noticiado, dois investigadores lusos, Olga Ordaz (professora da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa) e Jorge Vala (investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) debruçaram-se sobre o assunto no artigo “Objectivação e Ancoragem das Representações Sociais do Suicídio Na Imprensa Escrita”, publicado em 1997.

Resultante de uma análise à forma, frequência e conteúdo do modo de noticiar o suicídio em oito jornais nacionais da Grande Lisboa, os investigadores recordam o trabalho de M. F. Martins, investigadora das Ciências Sociais que constatou: “é a transformação do gesto suicida em mecanismo individual e privado que conduz à sua estigmatização”, num contexto em que este é um gesto condenável e pouco abordado – tabu. Ordaz e Vala estudaram múltiplos aspectos da temática; constatam, por exemplo, que as notícias demonstram o uso da “objectivação do suicídio por metáforas”, sobretudo as estruturais (em que o conceito é organização no molde de outros mais concretos) e ontológicas (em que o tema adquire quase características humanas).

As ideias-chave são as de “solução”, “separação” e “renúncia”, reflectindo-se nos conceitos de “fuga”, “salto”, “saída”, “partida”, “despedida”, “renúncia”, “exílio” e “atalho”. Ordaz e Vale constataram ainda que outras ideias-chave são as de “recompensa” ou “nova experiência”, através dos conceitos de “repouso”, “cura”, “vida melhor” ou “viagem”. Os investigadores separaram os oito periódicos estudados em dois grupos: o grupo dos que apresenta “uma visão multifacetada e dinâmica do suicídio, salientando a sua dimensão humana e interactiva” e o grupo que “privilegia a ideia da incontrolabilidade e violência deste fenómeno”.

Ordaz e Vala, nas conclusões do estudo, sublinham ainda: “na difusão verifica-se um tratamento pluri-dimensional e heterogéneo do suicídio, a que se opõe, na propagação, uma pressão para a uniformidade, ainda que sem dicotomizações claras, próprias do sistema de propaganda, no quadro de um sistema de valores que não necessita de enunciação, mas à luz do qual o indizível do suicídio se traduz numa lição sem ambiguidades: a necessidade de preservar uma ordem social inquestionável”.

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