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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Eu não fui ao concerto…

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Não, não vi esse concerto que a RTP, a SIC, a TVI e as rádios estão a transmitir em directo no momento em que escrevo. Se não os ouço no meu dia-a-dia (tenho coisas bem melhores para ouvir) por que razão havia de os ouvir agora? Dizem-me que é um concerto solidário, indo as receitas para a União das Misericórdias! Acredito, mas sabe-me muito a uma nova forma de exploração mediática (e até interesseira) da tragédia.

Uns cantam e outros sofrem

Que me perdoem os bem intencionados. De resto, concertos é o que mais está a dar neste País. Todo o santo ano! Quase já disputam o terreno ao futebol. Até já temos um Ronaldo dos concertos! Aqui, hoje, uns tantos exibem-se perante o País em simultâneo em todos os meios de comunicação. Parabéns aos organizadores! Profissionais competentes! Grande evento! O País a seus pés. Dos que cantam. São vistos e ouvidos por milhões. Coisa nunca vista. Bravi! E lá se promovem! E lá venderão amanhã mais uns discos. Não os critico.

Fazem pela vida, pois a música portuguesa também está a sofrer a crise e essa austeridade que nunca mais passa. Mas ao menos esses ainda cantam! Porque há outros que não cantam, mas aproveitam o evento para se exibirem. São as famosas figuras públicas! Vi uma ou outra a exibir-se, alegre, risonha, satisfeita, bem vestida e maquilhada quando assistia a mais um deplorável telejornal. Entre duas notícias sobre o SIRESP e as falhas nas comunicações de emergência, que custaram umas centenas de milhões.

E o director de um jornal a dizer coisas incompreensíveis sobre o sistema, em vez de estar a melhorar essa desgraça que há uns tempos atrás até era uma referência na imprensa. Ou seja, porque a informação sobre a tragédia já enjoa, continuemos agora – “the show must go on” – a falar dela, mas desta vez dando-lhe música! Como se a tragédia fosse menos tragédia desde que cantada em versão solidária! Só falta mesmo, a seguir ao concerto, vir aí um jogo de futebol solidário (”Juntos na Bola por Todos”). Com Ronaldo, no estádio de Leiria!

Ouvi mesmo um fadista dizer que ninguém leva um tostão! Claro, era só o que faltava, num concerto solidário! Mas disse-o em directo. E pus-me a fazer contas ao valor, em publicidade, da presença do fadista em “prime time”. Uma fortuna! Não leva um tostão, mas aparece em “prime time”, sem pagar os custos da publicidade.

O culpado é o SIRESP?

Pois é! Não há tragédia que não acabe em festança ou mesmo em negócio! E até negócio político porque há sempre quem venha tirar dividendos pela crítica ao poder do momento, mesmo que esses andem pelos meandros do poder há décadas, entre Governos, Assembleia da República ou Câmaras Municipais. E outros haverá que aproveitam a ocasião para fazer campanha eleitoral nos concelhos afectados, como se não tivessem também eles responsabilidades, enquanto  primeiros responsáveis da protecção civil concelhia. Não, não! Responsabilidades sim, mas não têm meios! É a lengalenga habitual!

Não, o que está a dar, além da publicidade, das audiências e dos concertos é o SIRESP. A tragédia deve-se a uma falha no sistema de comunicações. Se houvesse boas comunicações talvez nem houvesse fogos. E quem controla o sistema? Quem? Quem esteve no negócio, além do inefável Daniel Sanches, que lá saiu do anonimato para vir fazer recomendações em “prime time”? António Costa!  Pronto, já está! E quem tem responsabilidades sobre o sistema? O Governo. Pois! E a Ministra da Administração Interna! Claro! Agora só falta tirar ilações! Uma tragédia pede sempre mais vítimas e sacrifício!

Chorar!

Entretanto, enquanto não se apura responsabilidades, nada melhor que um bom concerto solidário. Cantar, cantar em homenagem às vítimas! E em apoio das Misericórdias e das populações. A quem certamente o que mais apetecerá é chorar, chorar os familiares, os filhos, os pais, os avós… Chorar!

Para esses, acabou mesmo a primavera ou, pelo menos, nunca mais será a mesma, por mais que lhes cantem aos ouvidos! Mesmo que seja o fado, em televisões e rádios em directo e em simultâneo. A esses fará bem o silêncio, sim, o silêncio, porque através dele poderão evocar mais em profundidade aqueles que amavam, mas que perderam. A esses não lhes serve a passerelle ou os fatos e vestidos Armani para exibirem em frente das câmaras de televisão. Serve-lhes um modesto fato preto para irem ao funeral dos que amavam. Esses de certeza que sofrem ainda mais ao reviverem todos os dias e a toda a hora as imagens da tragédia repetidas à exaustão, mesmo que seja sob a forma de música solidária. E até me dizem que o apoio material, na verdade, já transborda, devido à generosidade dos portugueses, desses que não vão a concertos, mas gastam o pouco que têm em pequenas dádivas aos sinistrados.

Não, eu não fui ao concerto, porque me sentiria mal. Prefiro ficar aqui a escrever e a pedir que o Estado e as Câmaras Municipais se preocupem mais com a limpeza das matas e florestas, limpando o combustível assassino. Não, eu não fui ao concerto! E se tivesse de ouvir música solidária, então preferia ouvir o Requiem do Mozart, sozinho, a lembrar-me dos amigos que já perdi nos fogos. Sim, porque perdi alguns. Mas a lembrar-me também do dia em que perdi o meu Pai. Também nesse dia preferi ouvir o Requiem de Mozart! Chamem-me snobe, sim, mas gosto mais dele do que do Abrunhosa, apesar de não ser português!

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