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Sábado, Abril 27, 2024

Golpe de Moscovo – começo do fim da URSS

Carlos FinoOs últimos meses tinham sido particularmente agitados. Em Dezembro de 1990, protestando contra a nomeação por Gorbachev de algumas das figuras mais conservadoras do regime, Shevardnadze demitira-se do cargo de ministro dos negócios estrangeiros, deixando no ar um alerta: “Vem aí uma nova ditadura!”.

Logo a seguir, em Janeiro de 1991, tropas da KGB dispararam sobre uma multidão em Vílnius, capital da Lituânia, fazendo uma dezena de mortos e uma centena de feridos.

Depois, em Março, realizou-se em Moscovo uma das maiores manifestações de sempre – cerca de cem mil pessoas no centro da (ainda) capital soviética em favor da democratização e pelo aprofundamento das reformas. Sem tradição democrática, a Rússia nunca tinha visto algo parecido.

A situação económica, social e política era muito tensa. O apoio financeiro dos países ocidentais com que Gorbachev contava não chegou a concretizar-se e a tendência era de agravamento, com dificuldades crescentes no abastecimento – lojas vazias e enormes filas para assegurar o pão nosso de cada dia.

Mas chegara Agosto e as coisas pareciam ter serenado um pouco. Gorbachev negociara com as repúblicas que ainda não reivindicavam a sua independência um novo Tratado da União, que instituiria uma grande descentralização do poder, marcando para dia 20 a cerimónia de assinatura. E logo a seguir partira para uns dias de férias na Crimeia. Boa parte dos jornalistas estrangeiros acreditados em Moscovo, entre os quais me encontrava, aproveitaram para fazer o mesmo.

Cheguei a Lisboa no dia 18, pensando que iria desfrutar de umas merecidas férias na praia da Caparica, onde então tinha um pequeno apartamento. Mas não cheguei a desfazer a mala. Na madrugada do dia seguinte, fui acordado por um telefonema da minha irmã mais velha: “- Já viste o que aconteceu em Moscovo?” Não, não tinha visto… “Houve um golpe de Estado, pá!”.

Esse é o maior pesadelo pelo qual nenhum correspondente quer passar – estar fora do local de trabalho num momento decisivo. Felizmente, nesse dia, havia voo da Aeroflot. A RTP – televisão pública portuguesa – marcou a viagem e à noite já estava de novo em Moscovo a reportar sobre os acontecimentos.

A primeira impressão era de que se tratava de um golpe estranho – não havia tropas no aeroporto, a rádio “Ecos de Moscovo”, favorável às reformas, continuava a emitir e as ligações telefónicas com o estrangeiro, embora sempre demoradas e dependentes de um pedido prévio à central, continuavam a funcionar. Era um golpe manifestamente indeciso.

Na tarde desse mesmo dia, os homens do golpe – o autodenominado Comité de Estado para a Situação de Emergência, GKTCHP, na sigla em russo – que integrava, entre outros, o vice-presidente Ienáv, o ministro do Interior Pugo, o ministro da defesa Iázov e o chefe da KGB Kriutchkov, deram uma conferência de imprensa conjunta (outra originalidade em golpes de Estado) em que pareciam assustados – Ienáv falava com voz entaramelada e tremiam-lhe as mãos…

Os acontecimentos mais dramáticos tiveram lugar na noite de 19 para 20. Tanques enviados pelo GKTCHP para tomar de assalto a sede do governo da Rússia, chefiado por Boris Ieltsin, que em cima de um tanque se opôs abertamente ao golpe, apelando à resistência, dispararam no centro de Moscovo contra um grupo de jovens que tentava barra-lhes o caminho. Três foram mortos, mas os tanques acabaram por não passar, defrontando cada vez maior resistência, incluindo de muitos soldados que se recusavam a atirar de novo sobre a população.

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Há 25 anos, Golpe de Moscovo de Agosto de 1991 acelerou processo de desintegração da URSS

Nessa madrugada, ao cabo de algumas horas de angústia, unidades militares mudaram de campo e em vez de tomarem de assalto a chamada Casa Branca – sede do governo russo – como lhes tinha sido ordenado, passaram a defendê-la. Com a população jovem nas ruas em favor de Ieltsin e as unidades militares mais importantes ora hesitantes ora contrárias à acção desencadeada pelo GKTCHP, o golpe estava condenado ao fracasso.

Gorbachev sabia?

Na mansão de férias do Estado, em Foros, na Crimeia, Gorbachev declarou-se traído e, apesar de se considerar prisioneiro, gravou uma mensagem contra os golpistas.

Lembro-me de, na altura, ter considerado tudo aquilo meio estranho e, mesmo depois do desenlace, fiquei na dúvida – Gorbachev sabia ou não sabia do que se estava a passar?

A resposta, hoje, é inequívoca – Gorbachev sabia.

Meses antes, o presidente da câmara de Moscovo, Gavrílov, comunicara ao embaixador americano Matlock que um golpe estava em curso e quais eram os principais conspiradores. A informação foi transmitida a Washington, que a fez chegar por canais diplomáticos ao líder do Kremlin.

A reação de Gorbachev foi sempre a de considerar que as coisas estavam sob controlo. Essa era aliás a aparente intenção (ou a justificativa?) das nomeações de figuras conservadoras que ele próprio promoveu – atraí-las para o núcleo do poder para eventualmente as neutralizar. Mera ilusão – todas elas acabaram por traí-lo.

Resta saber se houve efectiva traição, ou se a ambiguidade de Gorbachev deixou as coisas indefinidas num limbo que permitia várias interpretações. Indo de férias numa altura crítica, a mensagem implícita podia ser a de conferir luz amarela a uma tentativa de volte-face, ao mesmo tempo que ele se mantinha longe, à espera de ver o resultado.

A verdade é que a situação lhe escapava cada vez mais e Gorbachev não dava conta de reassumir o controlo de um processo – a liberalização do regime – que, qual aprendiz de feiticeiro, cada vez mais lhe escapava.

Seja como for, os acontecimentos acabaram por evoluir numa direcção que ele nunca pretendeu – quando reemergiu em Moscovo, como ele próprio confessou, foi como se tivesse regressado a um outro mundo.Tudo tinha mudado – o líder agora era Ieltsin – o chefe da resistência ao golpe – e a mudança controlada da URSS com que Gorbachev sonhara praticamente eclipsara-se.

Não mais uma evolução, de cariz social-democrata, mas uma guinada completa rumo à desintegração.

As repúblicas aproveitaram o colapso do poder central em Moscovo para declarar autonomia. No dia 1 de Dezembro, a Ucrânia aprovava, em plebiscito, a sua independência e uma semana depois os três líderes eslavos (Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia) declaravam extinta a URSS, criando, em sua substituição, a Comunidade de Estados Independentes.

No dia 25 de Dezembro de 1991, Gorbachev renunciava e a 1 de Janeiro de 1992 a bandeira vermelha com a foice o martelo do comunismo era arreada dos mastros do Kremlin, erguendo-se, em sua substituição, a velha bandeira tricolor dos czares moscovitas do século XVII.

Há 25 anos, Golpe de Moscovo de Agosto de 1991 acelerou processo de desintegração da URSS
Há 25 anos, Golpe de Moscovo de Agosto de 1991 acelerou processo de desintegração da URSS

Não foi o golpe falhado que desintegrou a URSS. Essa desintegração já vinha de longe, com o esgotamento ou, melhor, com o falhanço do modelo económico soviético. Na própria concepção de Lénine, o socialismo só se justificava se instaurasse uma produtividade superior à do capitalismo. E isso, talvez com excepção dos tempos heróicos da mobilização popular na construção das infraestruras básicas – nunca se concretizou de forma sistemática.

Não foi, portanto, o golpe falhado que desintegrou a URSS. Mas o golpe veio precipitar tudo, acelerando um processo de transformação que era inevitável. O modelo estava esgotado e a mudança impunha-se. E em 1991, na altura em ocorreu, tudo já tinha ido demasiado longe – do gosto pela liberdade à afirmação da autonomia das nações – para se conceber que um outro caminho ainda teria sido possível.

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