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João de Sousa

Quinta-feira, Abril 25, 2024

MÃE em tempo de ditadura

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

Já uma estrela se levanta

Pela primeira vez, decorridos três meses de prisão, a direcção da cadeia tinha dado resposta positiva a um pedido meu: juntaram-me a outras companheiras. Duas. Numa cela onde cabiam apenas dois beliches, mal havia espaço para caminharmos entre a porta e a janela.

A alegria delas foi pelo menos tão grande como a minha, quando a porta se abriu e eu surgi ao lado da guarda – «a viúva» –, de sacos na mão, a entrar-lhes pela rotina dentro. O espaço atafulhava com os haveres das três, mais as sobras de comida levadas pelos familiares, mais umas roupas tristes.  Reparei logo numas fraldas esbranquiçadas estendidas por ali.

Farta de esperar que a chamassem novamente para interrogatório, ou a libertassem, a Lurdes todos os dias cosia a blusa esgaçada pelo peito forte, sempre no mesmo sítio. Assim sentada, sempre no mesmo lugar do mesmo beliche, era uma mulher sã, tranquila, a receber os últimos raios de sol (esta é a imagem que guardo da querida Lurdes, já falecida). A Maria viera do Alentejo e queria saber mais, mais de tudo, do que quer que fosse – «ler, ler, saber ler melhor, amiga!». Inquieta, saudosa, e muito sofrida.

Eram companheiras na sombra, que procuravam agora resistir

Primeiro conversámos, de pé atrás, elas comigo e eu com elas, pois não nos conhecíamos, nada sabíamos umas das outras, nem víamos razão para termos sido enfiadas, juntas, naquele cubículo. Seria para nos ouvirem desabafos? Nos espiarem? Nos desestabilizarem?

«Serão elas da PIDE?», «será ela da PIDE?», pensávamos as três, precavidas por experiências alheias, que nos tinham sido contadas anteriormente. Foram interrogações que silenciámos, dia após dia – até ao dia em que começaram a desaparecer, aos poucos. No princípio houve, pois, um falar por falar.

Cruzávamos histórias de vida, como mulheres e como antifascistas, assumindo-nos apenas como «democratas», digamos. Nunca falávamos do partido.

Já ia grande a intimidade entre nós e ainda não nos atrevíamos a levantar o véu sobre a verdadeira acusação com que a polícia nos confrontara. Acarinhávamo-nos, emocionávamo-nos a par, usávamos palavras sinceras de encorajamento, mas jamais dissemos a verdade, jamais quebrámos confidencialidades, jamais esclarecemos que actividades nos tinham levado, afinal, a Caxias.

Andávamos de roda, guardando segredo do real motivo que ali nos conduzira: PCP uma, outra e outra, elas guardiãs corajosas das casas clandestinas e eu militante para o que desse e viesse e o partido quisesse.

Cúmplices no quotidiano da cadeia

Tempos depois éramos amigas, estávamos juntas e cúmplices no quotidiano da cadeia – ainda que eu, como sempre, em situações semelhantes, receasse não me «redimir» completamente da minha origem de classe. De facto, pareceu-me que só aos poucos ia ganhando a confiança das amigas. Não pertencer ao proletariado dificultava as coisas: sentia-me uma camarada de segunda. (Adiante.)

Lembro-me de que nos entendíamos bem, que podíamos ter vivido sem grandes sobressaltos os meses que nos faltavam até ao fim do período de isolamento, até à formalização da acusação que nos levasse ao Tribunal Plenário da Boa Hora.

Mesmo sem visitas regulares, sem recreio, sem livros, sem nada para escrevermos ou com que nos ocupássemos, podíamos ter aproveitado esse tempo para ganhar paz, somando gestos de solidariedade com trocas de ternura e de optimismo, acalmando medos e reforçando, a cada dia, a confiança de que tanto carecíamos para as batalhas com que ainda nos ameaçavam lá dos lados da Rua António Maria Cardoso.

Talvez tivéssemos podido, simplesmente, deixar correr as horas, falando da nossa infância (as amigas, sendo funcionárias do partido, pouco podiam falar das suas vidas), ou rindo, ou cantando. Com a Maria a aprender a ler, calmamente. Mas não: o menino não nos dava sossego, nem de noite, nem de dia.

Mãe em tempo de ditadura

Tinha uns 2 anos e acompanhara a mãe na prisão, desde o primeiro momento. Viera ao colo dela para os interrogatórios na Rua António Maria Cardoso. Ficara ao lado da Maria, alentejana, horas a fio, na sede da PIDE. Vivia com a Maria naquela ala do Forte de Caxias havia quase dois meses.

A camarada não estava autorizada a sair para o «recreio»; logo, a criança não apanhava ar, não corria, não via mais ninguém, não brincava fora das quatro paredes da cela. Ela não largava o filho e exigia a libertação, eles exigiam que «falasse», que denunciasse. O menino ficava no meio. Dia após dia, era isto.

Não conseguíamos entretê-lo nem acalmá-lo. Comia pouco, pouco sorria, mal dormia e gritava de manhã à noite. Uma dor de alma. Gritos ensurdecedores, gritos de aflição, gritos de loucura, gritos roucos. Gritava enquanto corria por entre as camas, numa explosão da energia que tão dolorosamente acumulava. Uma corrida desenfreada e desesperada, a que punha termo atirando-se contra os ferros dos beliches. Ou então subia, literalmente, por uma parede acima e deixava-se cair.

Só assim, já exausto e com a cabeça magoada, adormecia nos braços da mãe. Ela, a Mãe, às vezes chorava.Uma imagem surreal de Maria com o menino, em tempos de ditadura.

«Já uma estrela se levanta». Helena Pato, 2011.

Foto: Fernanda Zanetti/G1

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