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Sábado, Dezembro 7, 2024

Manobras de bastidores

Guilherme Alpiarça, em Maputo
Guilherme Alpiarça, em Maputo
Jornalista; voluntário em Moçambique desde 2012

Moçambique

A divulgação dos resultados da auditoria internacional e independente aos empréstimos contraídos por três empresas públicas de Moçambique (Ematum, Proindicus e MDM),  com o aval do Estado, foi adiada até ao final de Abril.

A auditoria internacional independente às dívidas escondidas foi uma exigência do FMI para reatar o apoio a Moçambique, após a suspensão dos seus financiamentos com a revelação do escândalo, em Abril de 2016, e que levou também os 14 doadores do Orçamento do Estado a interromperem os seus pagamentos.

A auditoria incide sobre empréstimos contraídos em 2013 e 2014 pela Mozambique Assett Management (MAM) e pela Proindicus, no valor de 1,4 mil milhões de dólares, a que se juntam mais 727,5 milhões de dólares da emissão de títulos de dívida soberana que resultaram da reestruturação da emissão de obrigações no montante de 850 milhões de dólares emitidas pela Empresa Moçambicana de Atum (Ematum).

O valor total apurado da chamada “dívida oculta”, contraída no último ano e meio da presidência de Armando Emílio Guebuza, ascende assim a mais de 2.000 milhões de dólares americanos, para um PIB nominal de 16.590 mil milhões ou de pouco mais de 650 dólares americanos por habitante. Além da dívida “escondida” da Assembleia da República moçambicana e dos países parceiros internacionais que contribuem com um percentagem de quase 40% do Orçamento de Estado moçambicano, as dívidas conhecidas do País eram já superiores a 14.000 milhões de dólares. A dívida oculta conduziu à retirada dos financiamentos por parte dos países doadores, colocando a economia moçambicana, uma das dez mais débeis do mundo, num beco sem saída.

Neste final de ano, grande parte dos funcionários públicos não recebeu 13º mês e em muitas repartições e instituições estatais os salários estão atrasados ou em risco, o que levou ao aumento exponencial do tão popular “refresco”, a expressão nada subtil que o funcionário usa para pedir um suborno a troco de um documento, uma assinatura ou um carimbo. Exames como uma simples ecografia a uma grávida, que são gratuitos por lei, levam ao pedido de um “refresco” de 1.000 meticais (mais de 13 euros ou o equivalente a quase um terço do salário mínimo nacional de pescadores e agricultores, quando o têm, uma vez que grande parte da população não tem qualquer contrato de trabalho). É o caso de Rosa, agricultora na Bela Vista, distrito de Matutuíne, a sul de Maputo, que saiu do hospital da cidade da Matola sem a ecografia urgente indicada pelo médico, dadas as dores abdominais que sofria, e sem dinheiro para o refresco que lhe exigiram.

À procura de um bode espiatório – ou mais

Este segundo adiamento, anunciado há três dias, de uma auditoria que não é formalmente chamada de “forense” embora, na prática, o seja, foi transmitido à portuguesa agência Lusa pela Procuradoria Geral da República de Moçambique que refere que a prorrogação do prazo resulta de um pedido feito pela filial britânica da consultora norte-americana Kroll, à qual foi adjudicada a referida auditoria. A nova data para a entrega do relatório final foi estipulada para o dia 28 de abril de 2017.

Entretanto, na última semana, Gerry Rice, representante do FMI,  recordou que o Fundo defende de forma resoluta a realização da auditoria, que está a ser desenvolvida pela empresa Kroll Associates UK, e reforçou a ideia de que os resultados serão divulgados, “não se sabendo ainda quando.”

Rice, questionado sobre o que Moçambique deve fazer primeiro – negociar um pacote financeiro com o FMI ou reestruturar a dívida com os credores – afirmou que “não há uma sequência” e acrescentou apenas que “as discussões estão em curso.”

De acordo com diversas fontes contactadas pelo “Tornado”, o que está em questão nos sucessivos pedidos de adiamento é a negociação dos termos finais do Relatório da Auditoria. “Aqui vai ter de ser dito como e quando e por quem. Não tem como!”, afirmou António Manhiça, consultor fiscal de empresas do sector privado e um atento seguidor das questões que envolvem o processo no seio do partido no poder, a Frelimo.

Embora a economia moçambicana tenha caído de mais de uma década de crescimento contínuo do PIB superior a 7% para valores próximos dos 4,5%, o sentimento generalizado é de que a classe política dirigente no país, orientada pela Frelimo, já decidiu proteger a qualquer custo o anterior Presidente Armando Emílio Guebuza e deixar cair algumas cabeças (de preferência poucas) sonantes, sendo Manuel Chang, o então ministro das Finanças, que aceitou a contragosto assinar os avais de Estado às dívidas contraídas junto dos bancos internacionais emissores, a figura mais falada para fazer o papel do “otário” sobre quem irão recair as responsabilidades maiores sobre o escândalo.

O adiamento é atribuído, também, à negociação acirrada entre as diferentes facções da Frelimo sobre os procedimentos da contracção dos empréstimos e os nomes a divulgar no Relatório final, sabendo-se que, do dinheiro envolvido, generosas comissões foram distribuídas por diferentes “famílias” do poder, mas não todas.

Conflito armado em “stand-by”

Neste quadro, foi já acordado um terceiro cessar fogo, de mais dois meses, entre Filipe Niusy, o actual presidente da República, e Afonso Dlakhama, presidente da principal força da oposição quer parlamentar, quer militarizada. No centro de Moçambique recrudesceram os confrontos armados entre as duas forças desde 2013 até ao Natal de 2016, causando pesadas baixas entre militares das duas partes e, ainda, várias centenas de civis apanhados no meio da refrega.

Recorde-se que as dívidas ocultas foram contraídas em boa parte para aquisição de equipamento militar, ao invés dos propósitos declarados por empresas como a Ematum (compra de barcos de pesca do atum de forma a minorar a falta de alimentos ricos em proteínas para a população moçambicana e, também, de material de vigilância costeira). E se alguns barcos atuneiros foram efectivamente adquiridos, jazem, como o Tornado teve ocasião de verificar na segunda semana de Março, junto ao porto de Maputo, ancorados e a ganhar ferrugem.

A trégua é muito precária, de acordo com todos os analistas e, também, na opinião popular, farta de miséria e de guerra, massacrada pelo trauma colectivo moçambicano que foi a Guerra dos 16 anos que, até aos acordos de Paz de 1992, destruiu grande parte das infraestruturas produtivas e de comunicação ainda existentes no país e durante a qual morreram largas centenas de milhares de pessoas.

Esta cessão das ostilidades, no entanto, é uma das exigências fundamentais dos países parceiros de Moçambique para que se restaure uma normalização institucional entre o Grupo de Doadores e o Governo moçambicano, pelo que é mais do que adquirido de que o próprio Afonso Dlakhama foi fortemente pressionado a dar instruções para que nem mais um tiro fosse disparado depois de um primeiro cessar fogo de dois dias a que se seguiram outros dois de dois meses. Em Maio, é presumível que, caso a questão da auditoria da dívida ainda não seja alvo de um Relatório validado e do conhecimento público, as tréguas sejam de novo prorrogadas.

Todo o processo de divulgação do Relatório da dívidas oculta bem como da manutenção de uma paz precária vai decorrendo com sucessivos adiamentos e prorrogações, à boa maneira moçambicana. Afinal,está é a terra onde o “vamos fazer” e o “vai acontecer” são substituídos pelos eufemístico “háde-se fazer” e há-de acontecer”. Pelo caminho, o povo moçambicano continua a sofres dos mais baixos índices de educação e de qualidade de educação da África subsaariana, as epidemias como o HIV/Sida, longe de controladas, estão em recrudescimento junto de vários grupos-alvo e a malnutrição extrema atinge os mais de 40% de crianças nos primeiros anos de vida em províncias como Niassa.

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