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Sexta-feira, Abril 26, 2024

Óscar Lopes

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

(1917 – 2013)

Figura ímpar da Resistência e das nossas letras, Professor universitário especializado em Linguística e Literatura, Óscar Lopes distinguiu-se em várias áreas da actividade intelectual, nomeadamente como co-autor da História da Literatura Portuguesa. Ensaísta de reconhecido prestígio, indissociável da valiosíssima obra realizada, a trajectória da sua vida legou-nos um exemplo de verticalidade e inteireza moral e ideológica e, também, um percurso de investigação e docência numa visão do mundo determinada pela condição de marxista e de militante comunista de longa data. 

Foi preso em 1955, pela sua actividade contra o fascismo e ficou um ano na cadeia. Na década de 60, foi sistematicamente impedido de entrar para o lugar de professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Óscar Lopes era um homem bom – uma bondade fruto sobretudo da sua elevada dimensão ética, que manifestava no espírito de abertura ao conhecimento e ao diálogo com o outro[1]. Das coisas de que mais gostava era de trocar, debater, defender ideias e por isso ouvia os outros com uma disponibilidade sem limites: fosse aluno principiante, intelectual ou um criador de renome. Ouvia-os com um interesse genuíno, deixando de lado os seus próprios preconceitos ou pressupostos ideológicos. Foi membro do Comité Central do PCP, de 1976 a 1996.

Percurso no mundo das artes e das letras

Óscar Luso de Freitas Lopes nasceu em 2 de Outubro de 1917, em Leça da Palmeira (Matosinhos), e morreu também em Leça da Palmeira, em 22 de Março de 2013. Oriundo de uma família católica e conservadora da pequena-burguesia intelectual, a mãe, Irene Freitas, era violoncelista e o pai, Armando Lopes, foi um compositor e importante etnomusicólogo, conhecido pelo pseudónimo Armando Leça. Nesta família de cinco irmãos (Óscar, Rui, Martim, Fernão e Mécia, futura mulher do escritor Jorge de Sena), em que se cultivavam as pequenas tertúlias e convívios musicais, Óscar Lopes usufruiu de condições ideais para se iniciar no mundo das artes e das letras e alimentar uma paixão pela música que exprimiu ao longo da vida[2]. Mas a infância e a adolescência vividas em Leça da Palmeira permitem-lhe outras aprendizagens. Influenciado também pelo espírito de solidariedade da avó materna, testemunha a existência duríssima dos pescadores e das suas famílias, e as imagens de fome e pobreza extrema iriam ficar-lhe gravadas na memória[3].


Porto, 29 de Março de 1950 – (da esq. para a dir.): Maria Helena, esposa de Óscar Lopes, Mécia de Sena, sua mãe Irene Leça, Jorge de Sena e Óscar Lopes com os filhos.

Os estudos secundários foram feitos no Porto, onde Óscar Lopes frequentou também o Instituto Britânico e o Conservatório de Música e onde continuou a aprofundar relações com os meios artísticos e intelectuais da cidade. Como aconteceu com muitos jovens da mesma geração, uma série de acontecimentos históricos molda a sua consciência política: por um lado, a descrença nas formas de liberalismo económico e político, decorrente da grande crise mundial de 1929, e, por outro, o avassalador avanço do fascismo na Europa, cujo primeiro golpe com repercussões à escala internacional foi a derrota das forças democráticas e republicanas pelo exército de Franco e pela direita na chamada Guerra Civil de Espanha (1936-1939)[4].

Em 1941, licencia-se em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas a ânsia de saber e a curiosidade intelectual, que constituem um dos seus traços de carácter, levam-no a completar também a licenciatura em Ciências Historico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Actividade docente

Em 1941 casa-se com Maria Helena (a sua companheira de toda a vida). Em 1945 adere ao PCP, e, nessa década, profere dezenas de conferências e palestras, sendo autor de inúmeras publicações em revistas e em livro, cujo primeiro título editado data de 1940[5]. Primeiro em Vila Real de Trás-os-Montes, depois nos liceus portuenses Alexandre Herculano, D. Manuel II e Rodrigues de Freitas, Óscar Lopes exerceu a docência no Ensino Secundário até 1974 (quando, já depois do 25 de Abril, seria chamado à Faculdade de Letras da Universidade do Porto).

A actividade docente foi sempre acompanhada de actividade ensaística, na qual, os domínios do saber privilegiados eram a literatura e a cultura portuguesas, a educação do gosto literário, as ciências da linguagem e o ensino da língua. E se o pano de fundo teórico de tais estudos foi sempre o marxismo e a sua concepção da luta de classes como motor da História, Óscar Lopes convocou outros contributos científicos e metodológicos, oriundos de diversas áreas do saber, dando uma visão poliédrica, criativa e aberta, dos muitos temas de que se ocupou, em particular nos domínios da historiografia e da crítica literárias. Porém, a sua carreira como docente e investigador teve de enfrentar numerosos escolhos, já que o fascismo nunca lhe perdoou (como não perdoou a muitos professores e investigadores do seu tempo) as posições públicas assumidas, nem as atitudes e acções de coragem e firmeza na resistência à ditadura de Salazar e Marcello Caetano, tanto na frente unitária da Oposição, como na qualidade de militante do PCP.

Óscar Lopes participa, intervém, está presente nos primeiros passos de todos os movimentos unitários antifascistas que emergiram a partir de meados dos anos 40, não obstante a implacável repressão do regime: MUNAF (Movimento de Unidade Anti-Fascista), MUD (Movimento de Unidade Democrática), campanha de Norton de Matos para a presidência da República, MND (Movimento Nacional Democrático); e, em 1950, na Comissão Nacional para a Defesa da Paz, na candidatura de Ruy Luís Gomes violentamente reprimida, e nas eleições legislativas de 1953.

Participação cívica constante

No quadro de uma luta que se agudiza, e na qual Óscar Lopes tem participação constante e activa, é demitido do seu lugar de professor e processado por actividades no Movimento pela Paz. Em Março de 1955 foi preso para averiguações por «crimes contra a segurança do Estado», em Julho do mesmo ano foi libertado sob caução e, dois anos mais tarde, em Junho de 1957, foi julgado[6]. Embora tivesse sido absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto, foi contudo impedido de assinar com o seu nome os artigos da página literária do jornal O Comércio do Porto – onde publicava textos de crítica literária –, sendo obrigado pela PIDE a usar o pseudónimo de Luso do Carmo.

A readmissão no ensino oficial dá-se em 1957. Alvo de constantes ameaças, pressões policiais, e outras, provindas das autoridades educativas, continua sempre a ser-lhe vedada a possibilidade de leccionar Literatura, História e Filosofia nos anos mais avançados do secundário (o que já acontecia desde 1953). Em Junho de 1963, foi de novo detido pela PIDE mas por poucos dias. Limitado ao ensino de Latim, Grego ou Português (nos primeiros anos) – embora sempre considerado um professor de excelência, quer do ponto de vista humano, quer no plano cientifico-pedagógico –, a sua investigação vai orientar-se, também, para as questões da aprendizagem da Língua, em particular da Gramática. A sua Gramática Simbólica do Português, editada em 1971 e reeditada em 1972, abriu os caminhos da moderna linguística portuguesa.

Mais tarde, encetará inovadoras experiências pedagógicas de articulação do ensino da Língua com a Matemática, (favorecidas pela circunstância de ter obtido, em 1967, uma bolsa do Instituto de Estudos Pedagógicos da Fundação Calouste Gulbenkian, com equiparação a bolseiro pelo Instituto de Alta Cultura, situação que se manteria até 1973). Por várias vezes foi impedido de sair do país, o que dificultava a apresentação dos resultados da sua investigação, além de impossibilitar a participação em júris internacionais de Literatura para os quais era convidado. A iníqua obstinação das autoridades fascistas em tolher, por todas as vias possíveis, a carreira de Óscar Lopes como investigador, não permitindo assim a expansão do seu talento científico e prestígio no mundo académico, inviabiliza, na segunda metade da década de 60, as sucessivas candidaturas que apresenta ao lugar de professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Obstáculos que não o desencorajaram

Estes múltiplos obstáculos não o desencorajam, contudo, de prosseguir a sua actividade política em prol da liberdade, da efectiva restauração dos direitos cívicos e do derrube da ditadura fascista. Entre a segunda metade da década de 50 e o 25 de Abril, desenvolvem-se novos e difíceis combates contra a Ditadura, nos quais Óscar Lopes estará sempre corajosamente, na primeira linha, nomeadamente em iniciativas de unidade da Oposição: legislativas de 1957, presidenciais de 58, criação da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (1969), II Congresso Republicano (1969) – em que apresentou, com Maria Cristina Araújo e Egito Gonçalves, uma tese intitulada «Perspectivas Democráticas da Literatura Portuguesa»; e III Congressos da Oposição Democrática (1973). Foi candidato nas listas da Oposição, nas legislativas de 1973. Membro activo da Sociedade Portuguesa de Escritores, encerrada pelo regime fascista, Óscar Lopes fez parte da comissão promotora da constituição da Associação Portuguesa de Escritores (APE), de que veio a ser presidente.

Até ao 25 de Abril e no quadro da resistência antifascista, a acção de Óscar Lopes, enquanto intelectual comunista, exerceu considerável influência, à escala nacional, em escritores, artistas, homens da cultura e da ciência, bem como nos círculos de democratas que se opunham ao fascismo. Foi figura de proa na dinamização da vida cultural e cívica do Porto, sobretudo entre os anos 50 e 70, desdobrando-se em palestras, em discursos proferidos em homenagens a várias personalidades e ainda na co-organização de eventos culturais, sempre fortemente vigiados e condicionados pela PIDE ou mesmo proibidos.

O merecido realce dado à obra ensaística nas áreas da Literatura e da Linguística tem deixado na sombra os seus textos de intervenção política e de pedagogia social, merecedores, para alguns, de imprescindível reflexão[7].

Prémios e homenagens

Tal como aconteceu com a atribuição de prémios à sua notável obra de ensaísta e crítico literário, as homenagens à figura de Óscar Lopes, não obstante as proibições impostas pela PIDE, iniciaram-se ainda antes de 1974 (a última durante a Ditadura decorreu num jantar no Porto, com dezenas de antifascistas, poucos dias antes do 25 de Abril. Mas uma das mais significativas, já no período revolucionário, terá sido o apelo que lhe foi dirigido, poucos dias após o 25 de Abril, para ocupar o lugar de director da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Aconteceu num vibrante plenário (RGA), em que os estudantes de Letras da Universidade do Porto acolheram a proposta de que Óscar Lopes fosse integrado na Faculdade e assumisse a presidência do Conselho Directivo. Momento assinalado por uma aclamação entusiástica, no salão nobre do actual Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, que era, na época, o edifício central da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP).


Intervenção de Óscar Lopes na sessão de homenagem que lhe foi prestada, em 20 de Abril de 1974, nos arredores do Porto, no Parque da Aguda. Fotografia de Sérgio Valente. Nesta foto há vários democratas conhecidos: Victor Sá, Humberto Soeiro, César Príncipe, Egito Gonçalves e Stecht Monteiro; sentado em primeiro plano, de óculos, Arnaldo Mesquita.

Com a sua aura de antifascista, de professor e intelectual perseguido e preso pela ditadura, Óscar Lopes revelou-se, durante esse período, alguém com invejável capacidade de trabalho, que sabia escutar os estudantes, os seus anseios, a argumentação que traziam. Porém, alguém que nunca esgrimiu o seu passado para legitimar uma autoridade que, no entanto, era reconhecida por todos; uma voz que valorizava a intervenção, mas que também contra-argumentava serenamente, e desse modo chamava à razão. Desempenhou assim papel decisivo na contenção dos muitos oportunismos e radicalismos de ocasião, salvaguardando a dignidade da instituição universitária e a relevância da sua função social como espaço de investigação, ensino e construção de saberes. Óscar Lopes iria dar um valioso contributo à Universidade, nos anos subsequentes, quer como professor e investigador em Linguística, especialmente em áreas como a Semântica, a Pragmática, a História da Língua e as relações entre Linguística e Matemática, quer como orientador de investigadores (doutorandos e estudantes de mestrado), numa atitude sempre generosa, de infatigável partilha de saberes, da qual os seus discípulos e colegas de então continuam a dar emocionado testemunho[8].

Terminou a sua carreira académica como Professor catedrático da FLUP, tendo sido Vice-reitor da Universidade do Porto em 1974 e 75. Em 1976, já professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, deu o impulso fundador ao Centro de Linguística da Universidade do Porto. Nesta faculdade leccionou exclusivamente disciplinas da área da Linguística, tendo a primeira sido a de Linguística Matemática Computacional.

Sempre se situou nos antípodas de um modo individualista e egocêntrico, imodesto e oportunista de estar na vida e na academia, na crítica, na cultura. À semelhança de outras figuras inesquecíveis do século XX português, que nunca dissociaram a cultura científica da cultura humanística e artística, Óscar Lopes é um exemplo moral e cívico para os dias por vir.

Com o passar dos anos, as suas responsabilidades no PCP aumentaram, tendo sido eleito, em 1976, para o Comité Central, que integrou até 1996.

Óscar Lopes foi autor de dezenas de obras no domínio da Literatura e da Linguística, com especial relevo:

  • As Mãos e o Espírito (Porto, 1958);
  • Ler e Depois (Porto, 1969);
  • Uma Espécie de Música – A Poesia de Eugénio de Andrade (Lisboa, 1981);
  • Antero de Quental – Vida e Legado de Uma Utopia (Lisboa, 1983);
  • Cifras do Tempo (Lisboa, 1990).
  • Gramática Simbólica do Português – Um Esboço (Lisboa, 1971);
  • Gramática Simbólica do Português. Lisboa: Instituto Gulbenkian de Ciência, 1972, 2.ª ed.;
  • Entre a Palavra e o Discurso: Estudos de Linguística (1977-1993). Coordenação da edição de Oliveira, Fátima; Brito, Ana Maria. Porto, Campo das Letras, 2005;
  • História da Literatura Portuguesa (com António José Saraiva);
  • Álbum de Família: Ensaios sobre Autores Portugueses do Século XIX. Lisboa: Caminho, 1984;
  • Os Sinais e os Sentidos: Literatura Portuguesa do Século XX. Lisboa, Editorial Caminho, 1986;
  • Entre Fialho e Nemésio: Estudos de Literatura Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987: 1.º vol.: Geração de 1890;
  • Geração da República 2.º vol.: Modernismo A Busca de Sentido: Questões de Literatura Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1994.
  • 5 Motivos de Meditação: Luís de Camões, Eça de Queirós, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa. Porto: Campo das Letras, 1999.
  • Biografias: Jaime Cortesão. Lisboa: Arcádia, 1962;
  • Antero de Quental: vida e legado de uma utopia. Lisboa: Caminho, 1983.

Teve uma vasta colaboração em diversos jornais e revistas, onde se destacam a Seara Nova, a Vértice, o Mundo Literário (1946-1948), a Colóquio/Letras. Durante muitos anos, fez regularmente crítica literária no diário O Comércio do Porto.

Recebeu inúmeras condecorações, prémios e louvores, dos quais se destacam:

  • Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública de Portugal (12 de Abril de 1989); Grã-Cruz da Ordem da Liberdade de Portugal (9 de Junho de 2006).
  • Prémios pelos seus trabalhos de ensaio e crítica: Rodrigues Sampaio da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto; Jacinto do Prado Coelho (1985), do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários; P.E.N. Clube Português de Ensaio (1986), pela obra A Busca de Sentido: Questões da Literatura Portuguesa; Vida Literária (2000), atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores; Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora (2002), pelo conjunto da obra.
  • Voto de louvor aprovado pela Assembleia da República em 23 de Abril de 1987.
  • Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa, em 21 de Fevereiro de 1990.
  • O seu nome foi dado a uma escola do concelho de Matosinhos, a EB23 Óscar Lopes.


23 de Abril 1999 – “Óscar Lopes na nossa escola E B Professor Óscar”

 

Jantar de Homenagem a Óscar Lopes, no dia 20 de Abril de 1974. Fotografia de Sérgio Valente.

 

 

Jantar de Homenagem a Óscar Lopes, no dia 20 de Abril de 1974. Fotografia de Sérgio Valente

 

Jantar de Homenagem a Óscar Lopes, no dia 20 de Abril de 1974. Fotografia de Sérgio Valente

 

Os dias da Revolução – à porta da PIDE, no Porto. Vêem-se: Virgínia Moura, Óscar Lopes, Papiniano Carlos, Olívia Vasconcelos

 

Óscar Lopes, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade

 

[1] Óscar Lopes foi um homem bom. E foi um homem humilde como só os homens sábios sabem ser. Humilde no saber, nas certezas, sempre pronto a rever-se e a ensaiar novas soluções para o mar de interrogações por onde navegava procurando persistentemente respostas, sem que isso implicasse perda de um norte ideológico que toda a vida procurou com perseverança, estudo e abertura de espírito. A vida desafiava-o quotidianamente e todos os planos da realidade o interpelavam, por isso nunca se fechou numa única área do saber, nunca foi rato de biblioteca, embora tivesse sido um leitor compulsivo, nunca se fechou ao chamamento do mundo, quer o mundo fosse a sua escola, a sua cidade, o seu partido, o seu país, o planeta, o cosmos. Tudo o interessava e por isso era tão fascinante ouvi-lo, sempre apaixonado pelo ato de pensar, falar, quer da história duma palavra, como da de um longínquo astro, quer de uma qualquer estrutura linguística, como de um verso de Camilo Pessanha, quer da música que tanto amava, como do último problema de lógica com que se debatia. Amava a humanidade e o mundo tão agreste em que lhe foi dado viver. (…) O membro do Comité Central do PCP que também foi durante algum tempo não adoptava qualquer ortodoxia nas suas opções ideológicas ou epistemológicas.»

[2] A escolha do nome próprio deve-a à admiração do pai pela figura do grande pianista e compositor Óscar da Silva.

[3] Numa sua entrevista de 1990, O. L. menciona a mendicidade e os elevados índices de mortalidade infantil da época (que levavam por vezes os pescadores a exibir os cadáveres de crianças mortas para receberem esmolas que lhes permitissem pagar o caixão), afirmando: Essas imagens de miséria da classe piscatória exerceram (…) uma grande influência moral e ideológica em mim. Senti-me desde muito cedo revoltado por essa camada popular, sobretudo de pescadores que viviam na miséria, com grandes dificuldades, especialmente quando surgia um temporal imprevisto para as condições desse tempo, em que não era possível pescar – e, na altura das pescas, morria-se muito frequentemente afogado, para não se morrer de fome.»

[4] Este esmagamento contou com o apoio activo de Salazar. Ante as posições ambíguas e a complacência dos governos das principais democracias burguesas ocidentais, do outro lado da barricada, a União Soviética e o movimento comunista internacional davam mostras de uma resistência tenaz à progressão do fascismo. Tal facto terá determinado, mais tarde, a adesão de O. L. aos ideais comunistas, numa firmeza de convicções que irá manter inabalável ao longo da vida.

[5] Destacam-se várias edições da (extraordinária) História da Literatura Portuguesa (1.ª ed., 1955), elaborada em parceria com António José Saraiva, e ainda a Gramática Simbólica do Português – Um esboço (1971). Esta última obra, inscrita na área da linguística e, em particular, da semântica, é considerada um trabalho pioneiro em Portugal, devendo-se o não reconhecimento internacional desse pioneirismo à simples circunstância de o autor ser português e de a obra não ter tido à época divulgação noutras línguas.

[6] A edição clandestina do «Avante!» de Fevereiro-Março de 1956 (ano 24, série VI, n.º 211) noticia: «O professor do liceu D. Manuel II, no Porto, Dr. Óscar Lopes, foi demitido e processado por defender a Paz. Indignados, os alunos do liceu elaboraram uma exposição. Estão a recolher entre os alunos assinaturas e opiniões sobre o Dr. Óscar Lopes. Vão enviar a exposição com as opiniões ao tribunal encarregado de julgar o seu digno professor».

[7] Saliente-se um texto lido durante a campanha eleitoral de 1969, um demolidor diagnóstico da situação do país em matéria de Educação, Cultura e Ciência, em que o autor escalpeliza as políticas do fascismo nestas áreas, denunciando a sua completa falência, em boa parte responsável pelo profundo atraso cultural, social e económico em que o país se encontrava. E se é exaltante descobrir a preocupação em avançar com propostas políticas estruturantes e fundamentadas, também o é ouvir uma voz corajosa em tempos de repressão e perseguições, estimulando os intelectuais a uma luta sem tréguas contra o obscurantismo, a negação de direitos e liberdades e os interesses económicos do grande capital que a ditadura servia.

[8] A condição de comunista que Óscar Lopes afirmou desde a sua juventude, com a naturalidade, simplicidade e coragem que lhe são próprias, constitui o fundamento de uma ética, de uma certa maneira de estar na crítica e na investigação, como na vida e na acção política. (…) Assistir às conferências do autor de Ler e Depois (ouvi-o falar de Aquilino, Torga, Eugénio de Andrade e de tantos outros) ou escutar as palavras por ele proferidas em ocasiões em que é objecto de homenagens públicas – palavras que não hesitam, quando necessário, em fazer luz sobre o estado do mundo – constitui uma aventura. A aventura de seguir o rasto de uma inteligência que a todo o momento convoca elementos das mais inesperadas áreas do saber, a fim de lançar luz sobre as tessituras literárias. Escutar e ler Óscar Lopes é testemunhar um pensamento que se desdobra e expande com rigor e coerência, de modo lúcido (palavra cuja remota raiz é a lux, lucis latina) e irradiante. É testemunhar um sentido que se constrói na pista de outro sentido e uma inteligência verbal sem paralelo. É dar graças por estar vivo e poder pensar com as palavras do outro. E é sentir que certos gestos de partilha e de procura de diálogo não têm retribuição possível.

Revolucionário: enfim, a palavra incómoda, ou quase, quando se aborda, no aconchego dos salões e dos auditórios académicos, a personalidade e a obra ímpares de Óscar Lopes (neste ponto, nada de diferente do que ocorre ou ocorreu com outras figuras, como José Gomes Ferreira ou Fernando Lopes Graça, para apenas citar dois exemplos). Quando o registo mais pessoal e íntimo ganha primazia, muitos dos seus discípulos e colegas lembram, e bem, o homem bom e íntegro, o lutador coerente e generoso, atento em permanência ao outro, animado de uma curiosidade ilimitada (reverso da sua simplicidade e da sua natural modéstia). E falam então do homem doce e de olhar vivo, que ama as crianças, os gatos, o chá e as camélias. Do apaixonado pela música e pela pintura. E eis-nos aqui, no terreno da unanimidade. Tudo isto – e não seria pouco – bastaria para dar sentido a uma vida. E ninguém ousará negar a excepcionalidade deste complexo de humanas qualidades. Em que, no entanto, os dons e o talento intrínsecos se viram modelados por um contexto familiar e local e afeiçoados por uma educação, um percurso de socialização, em convivência e aprendizagem com os outros. Importa por isso que aquele discurso dos afectos não sirva – como tantas vezes sucede – para deixar na sombra outras realidades: a do homem que assim é e assim se fez porque, neste ponto, a sua personalidade é comparável à própria literatura enquanto criação humana. E, «na literatura, como em geral na cultura, pode sempre distinguir-se uma ideologia, quer dizer, um conjunto de intenções historicamente determinadas, uma visão geral e discutível da realidade e das aspirações humanas» (faço questão de citar palavras da primeira edição que conheci – estávamos em 1971 – da História da Literatura Portuguesa: a 6.ª, Porto Editora, s. d., p. 9)» in Óscar Lopes: exemplo para os dias por vir

 


Dados biográficos:

 

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