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Quinta-feira, Abril 25, 2024

O problema é maior do que parece…

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

O recente caso da candidatura de Rui Moreira à Câmara Municipal do Porto, enjeitando o apoio do PS à sua lista, declarado há muito por António Costa, é maior do que a sua causa aparente. Parece mesmo ser um pretexto para um acto político substantivo. As palavras de Ana Catarina Mendes não o justificam. As boas relações (declaradas) entre Moreira e Pizarro ainda menos, a não ser a questão do lugar na lista.  O facto de o PS estar no poder, a nível nacional, menos ainda. O facto de tudo ter corrido bem entre o PS e Rui Moreira durante os últimos quatro anos de governo autárquico do Porto também não milita a favor do pretexto. Esta decisão de Rui Moreira deve, pois, ser lida politicamente. Porque foi um gesto político com fortes implicações. E tem um significado claro: Moreira quer medir forças com os partidos nucleares do establishment político, depois de há quatro anos os ter vencido, de forma consistente.

O erro do PS

Seja como como for, foi um enorme erro o PS não ter preparado, logo desde o início, uma candidatura própria. Sempre o pensei e vejo agora o erro brutalmente confirmado. O PS ia para uma competição política da maior importância com o seu exército completamente desmobilizado e com a direcção rendida ao comandante-em-chefe do exército aliado. Tratando-se do segundo município do País, o partido que governa Portugal nunca poderia deixar de apresentar autonomamente a sua própria proposta.

Nem que fosse somente para manter as suas tropas mobilizadas, em exercício e preparadas para outros importantes combates. Porque é nestas alturas que os partidos reforçam coesão interna, se mobilizam em torno de lideranças, de valores e de programas. É nestas ocasiões que o corpo orgânico dos partidos (disseminado territorialmente) se revitaliza, reorganiza e compacta.

Ora, no Porto, na segunda maior cidade do País, nada disto estava a acontecer, verificando-se até um certo incómodo interno pelo facto. Isto num partido que já tem algum défice de vitalidade interna e que se tem vindo a tornar num partido dominantemente profissional-eleitoral, embora com fortes raízes de partido de massas!

As causas profundas

Na verdade, a democracia local é o terreno onde se estão a ensaiar, com sucesso, no nosso país, soluções políticas fora do quadro partidário, constituindo os movimentos políticos não partidários a terceira força política ao nível das freguesias e a quinta ao nível das Câmaras e Assembleias Municipais (não tendo, todavia, concorrido a todas e não beneficiando de mandatos resultantes de coligações, como, por exemplo, o CDS/PP) (Pinto, J. F., O Poder em Portugal, Coimbra, Almedina, 2015, p. 115).

E o ambiente de fundo, mesmo no plano nacional e à escala europeia, começa a ser favorável cada vez mais a estas soluções políticas, que poderiam ser designadas por “Iniciativas Políticas da Cidadania”.

Em primeiro lugar, porque a endogamia obsessiva do sistema de partidos há muito que gerou perda de confiança nos cidadãos, provocando uma grave crise (partidocracia e crise da representação). Em segundo lugar, porque a autonomia da cidadania e a sua capacidade de aceder à informação cresceu exponencialmente com a expansão das plataformas de comunicação, em particular, com a expansão da rede. Em terceiro lugar, e por isso mesmo, a capacidade de livre intervenção e influência da cidadania no espaço público também cresceu de forma exponencial. Em quarto lugar, as possibilidades de auto-organização e de mobilização da cidadania não são comparáveis ao passado na medida em que as novas plataformas não precisam, como outrora, de suporte orgânico e territorial disseminado, porque são ágeis, móveis e com um enorme poder de penetração no espaço público e privado.

Falo, por exemplo, das TICs e das redes sociais, plataformas móveis e redes. Cresce, portanto, a auto-organização e a mobilização da cidadania, à esquerda e à direita, perante um sistema que começa a dar sinais de grave crise estrutural, dando azo a fortes tendências centrífugas que estão a ameaçar seriamente o sistema de partidos tradicional. Foi o que aconteceu com Donald Trump, com o Brexit, com as presidenciais francesas (com os fenómenos Macron e Mélenchon, que organizaram os seus movimentos, “En Marche!” e “La France Insoumise”, cerca de um ano antes), com “Podemos” e “Ciudadanos” em Espanha. E veremos em Junho em Inglaterra (o que acontecerá ao Labour de Corbyn), depois na Alemanha (a consistência de “Alternative fuer Deutschland”) e, depois, ainda, em Itália (2018; o poder do M5S).

Os sistemas de partidos, por razões estruturais – que já solicitam respostas mais abertas e centradas num cidadão cada vez mais exigente, complexo e portador de múltiplas pertenças -, e por excesso de endogamia, que lhes retirou vitalidade, não estão a responder com eficácia e flexibilidade às novas exigências da cidadania. E, entre nós, e porque a lei já o permite (embora com exigências tão absurdas que é possível ilegalizar facilmente qualquer movimento, demonstrando-se, assim, que os partidos, em vez de usaram as alavancas políticas para sobreviver, usam morteiros administrativos para aniquilar os adversários), é no plano autárquico que o fenómeno se está a manifestar com exuberância, apesar da ainda relativa fragilidade da AMAI, a organização nacional dos movimentos não partidários.

Do poder local para a nação

É esta realidade que me faz suspeitar de que a reacção radical de Rui Moreira relativamente ao PS possa indiciar (e a recente intervenção que fez na Universidade Portucalense indicia isso mesmo, ao realçar o aparecimento na Europa de novos partidos e o colapso dos velhos) a preparação de um movimento político de alcance nacional se os resultados comprovarem a sua força eleitoral perante os tradicionais pilares políticos do sistema, após quatro anos de governo da segunda maior cidade do país. O M5S também começou no plano autárquico.

A leitura política do acto de RM só pode ser, pois, uma: medir forças com os dois grandes partidos da alternância, num Município politicamente muito representativo, depois de quatro anos de uma gestão de sucesso, agora a ser certamente reivindicada, em autoria exclusiva, pelo autarca. Remeter Pizarro para o terceiro lugar e aproveitar declarações de Ana Catarina Mendes para enjeitar o apoio do PS só pode ter uma leitura: acto político intencional. Vontade declarada de medir forças com o PS e com o PSD.

Em conclusão

De qualquer modo, o PS não sai bem deste episódio e Pizarro não tem condições para reivindicar uma coautoria do sucesso num sistema totalmente presidencialista como é o do governo autárquico. O que estará, pois, em causa será a marca PS, numa situação muito pouco confortável, se não mesmo ambígua, até no discurso. Pizarro já perdera as eleições em 2013 com um resultado pouco honroso (26.156 votos, 23,62% e 3 mandatos contra os 45.584, 41,17% e 6 mandatos, de Rui Moreira) e o risco agora é que baixe ainda mais o score eleitoral, o que será péssimo para o PS.

O resultado deste ano será indicativo daquilo que poderá ser uma tendência para a entrada política no território nacional dos partidos do establishment. De resto, já existe uma Associação Nacional dos Movimentos Autárquicos Independentes (AMAI) que se poderá vir a constituir como alfobre de um movimento de novo tipo. Personalidades com robusto perfil político não lhe faltam. Assim haja vontade, imaginação organizativa, doutrinária e política e uma liderança capaz.

Os erros em política pagam-se caro e se os partidos não começarem a responder ao que politicamente já flui na sociedade civil e no espaço público, o que poderá acontecer é a rápida fragmentação do sistema de partidos. Isto não quer dizer que defenda o fim dos partidos clássicos ou a democracia directa. Defendo, isso sim, uma democracia deliberativa (veja-se o meu recente ensaio sobre o assunto na “Revista Portuguesa de Filosofia” – DOI 10.17990/RPF/2017_73_1-0015: “Crise da representação ou mudança de paradigma? Democracia, deliberação e decisão”), em linha com os tempos, que revigore o sistema representativo, chamando a cidadania ao sistema, e que obrigue os partidos a saírem da infeliz lógica endogâmica a que, há muito e comodamente, se entregaram!

 

Nota. Respirámos todos de alívio com a vitória de Emmanuel Macron por 66% dos votos contra os 34% de Marine Le Pen, em eleições com uma afluência de cerca de 75%! É uma vitória da França e da União Europeia. Contra o medo e o nacionalismo serôdio!

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