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João de Sousa

Quarta-feira, Abril 24, 2024

Três vezes onze

Durante este mês de Novembro, decorreram em vários países as comemorações do Dia do Armistício, aquele dia memorável em que terminou oficialmente a I Guerra Mundial, ou a Grande Guerra, como então se chamou. De facto, fora a maior até então.Portugal participou nessa guerra de dois modos diferentes. Em 1914, sem guerra declarada, houve no Sul de Angola confrontos com tropas do Sudoeste Africano, então colónia alemã e no Norte de Moçambique, confrontos com os alemães do Tanganica. A partir de 1916, Portugal entrou oficialmente em guerra contra a Alemanha, enviando um Corpo Expedicionário para o Norte de França e batalhões de reforço para Moçambique. Em Angola, graças à intervenção da África do Sul, os alemães tinham sido afastados logo em 1915.

As coisas correram mal em ambos os Teatros de Guerra, mas no caso de Moçambique foi pior; um assunto quase ignorado, embora tivesse sido aí que se registou o maior volume de baixas, não se sabendo, até hoje, qual o seu número exacto. Dessas baixas, também não se sabe ao certo quantas em combate, por doença ou por deserção. No livro “A Guerra que Portugal quis esquecer”, recentemente publicado, o autor procura colmatar essa brecha da nossa memória colectiva.

Mal sabiam os Homens que, uma vintena de anos mais tarde, outra Guerra Mundial haveria de causar ainda maior mortandade – cinquenta milhões de mortos, contra vinte milhões da primeira, entre militares e civis. E, nas duas guerras, a esmagadora maioria dos combatentes não eram profissionais, ao contrário dos séculos anteriores, mas pessoal do serviço militar obrigatório, ou seja, civis chamados às armas.

Daí a insensatez daquele senhor que quis passar à eternidade inventando uma frase profunda. Disse que o que mais gostava de ver eram um cemitério de militares. Dado que os cemitérios militares começaram a ser implantados durante a I Guerra Mundial (antes os mortos eram enterrados no local da batalha em valas comuns, à exceção de alguns oficiais), é fácil perceber (só ele não percebeu) que os defuntos eram civis recrutados. Mas a frase ficou, e ainda há quem a cite e repita, atestando a sua profunda ignorância ou perversidade.

Para melhor ilustrar o que era o tratamento dado aos mortos em combate, nada melhor que um exemplo. Depois da Batalha de Waterloo, os corpos dos militares aliados foram enterrados em valas comuns, e os dos franceses queimados em piras. Mais tarde, os ossos misturados de homens e cavalos foram recolhidos, moídos e serviram para fertilizante, antecipando em século e meio o que se fez em Auschwitz.

Resta saber se o tal senhor, apreciador de cemitérios, seria correligionário daqueles falangistas espanhóis que entoavam nas comemorações e nos brindes “Viva la Muerte!”. Ou se lamentaria ter sido reciclado um cemitério.

Pois a I Guerra Mundial acabou oficialmente (não é demais repetir) às onze horas do dia onze do mês onze (Novembro) de 1918.

Não por acaso: os negociadores acharam que deveria ser dado um cunho especial ao fim das hostilidades, e aquela conjunção 11/11/11 pareceu apropriada. E assim se acordou, assim se assinou e assim se cumpriu.

Ninguém pensou em antecipar de alguns dias, ou mesmo de algumas horas, o fim dos combates. Decerto não foi lançada nenhuma grande operação, mas ninguém na frente foi avisado, talvez para não desmoralizar as hostes. E assim, nesses dias e horas de Paz à vista, a guerra continuou, procurando qualquer das partes obter a máxima vantagem ou a diminuição das perdas.

Deste modo morreram umas centenas ou milhares de homens, no epílogo daquilo que hoje se chama, e com razão, uma guerra civil europeia. Basta ver os Presidentes da França e da Alemanha numa comemoração conjunta para compreender esta afirmação.

Para os grandes decisores, aquelas mortes inúteis seriam um detalhe, uma insignificância, algo irrelevante. Como no célebre livro “A Oeste nada de novo”, de Erich Maria Remarque, em que o herói morre num dia tão calmo, em termos de actividade militar, que o relatório do comando referia “A Oeste, nada de novo” – excepto para a família, os camaradas e os amigos do defunto, é claro.

Quando se assiste a longas deliberações sobre a forma como terminar um conflito, como os que agora decorrem na Síria, no Yemen, no Sudão ou outros locais, surge sempre aquela dúvida: estão à espera de quê? De um 11/11/11, ou de um 12/12/12?

Morrem por dia dezenas ou centenas de combatentes e não combatentes – sobretudo não combatentes. Mas as grandes instâncias parecem continuar apostadas numa aritmética estranha, em que todos os números contam – menos os das vítimas.

E é preciso não esquecer que para as viúvas, os órfãos, os familiares, os deficientes, os psiquicamente afetados, a Grande Guerra não acabou às onze horas do dia onze de Novembro de 1918. Perdurou o resto das suas amarguradas vidas, como perdura paras as vítimas das guerras que se deram depois de 1918 – e têm sido muitas.

Para que a Terra não esqueça.

Por Nuno Santa Clara. Publicado sob autorização do autor. Encontra-se também disponível no Diário de Notícias do Funchal.

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