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Sábado, Abril 27, 2024

A utopia – Entre o tormento e a angústia de acreditar

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Alexandre HonradoSomos produto mais ou menos inacabado das nossas utopias – ou da sua ausência.

Também somos a relação mais ou menos fecunda com a nossa capacidade de entender o que é espiritual. Mas sobretudo, somos o que fazemos – e aquilo em que acreditamos.

Não se entenda neste raciocínio que falo do que em nós se liga a uma estrutura de crença ou a uma religião digna desse nome. O que digo tem mais a ver com a convicção – e a forma de como nos pode tornar extremos a interpretá-la. Tem a ver com os nossos imperativos categóricos, para usar, de uma forma aligeirada, uma ideia ao gosto do filósofo Emanuel Kant (e acreditando, como acredito, que não há verdadeiro sistema de pensamento sem ética).

É assim que dou hoje comigo a pensar: quem tem razão? O Papa Francisco, com o seu entendimento, a par com o pensamento mais liberal do mundo ocidental, de uma linguagem próxima dos homens mas também com uma prática de poucas reformas profundas – a igreja católica com Francisco está com uma imagem mais dinâmica, mas não alterou substancialmente nada concreto do que lhe diz respeito e, a meu ver, não tem de o fazer, já que assenta na forte tradição de uma coerência própria? Recordo como o papa Francisco veio a público, muito recentemente, pedir perdão aos protestantes e membros cristãos de outras igrejas por perseguições sofridas em épocas passadas. Em cerimónia na basílica de Roma, o papa pediu “perdão pelo comportamento não evangélico de católicos perante os cristãos de outras igrejas”. Além disso, também pediu aos católicos que perdoassem as perseguições sofridas. Isto é, fez sublinhar que, se os católicos foram radicais na sua violência, não há todavia religião de mãos limpas, porque todas verteram sangue injusta e impunemente.

Esta atitude – do papa – é uma das utopias daqueles que creem na Paz. Mas quem tem razão?

Osama Bin Laden tinha como seu objectivo último a restauração do califado. Não só pela grandeza recuperada, mas pelo consagrar do Islão como realidade universal. Sonho redutor, impossível, utopia adiada. Como todas as utopias que, um dia, deixam do ser, ora porque se diluem ora porque se concretizam, deixando assim de ser utopias.

Terá razão Abu Bakr al-Baghdadi? Ele é o primeiro líder islâmico depois de Abdulmecid II (o 31º califa, entre 1823 e 1861) a reclamar esse título. Que utopia é esta? A de um mundo de sonhos sedutores e impossíveis, como a perseguição da paz e do perdão que outros relevam?

As potências europeias é que desenharam, no século XX, as atuais fronteiras árabes. Foram elas que escolheram líderes da sua confiança para as governarem. A Al-Qaeda e o Daesh, com a violência como único argumento, querem mudar isso. Só que, tendo falhado a Al-Qaeda, o Daesh se tornou nos últimos tempos o novo protagonista.

Mas em todos há o mesmo vigor utópico: o renascimento do poder da História através do ressuscitar de um passado de esplendor perdido, a excelência de um território que é terra prometida e apontada por um Deus (uma matriz comum a várias religiões) – a utopia da nostalgia sedutora, alcançável pelo diálogo (veja-se o papa) ou pelo efeito das armas (veja-se al-Baghdadi).

Mas quem tem razão na sua utopia? Serei eu, com uma cultura laica, não comprometida e livre? Ou os atores que montam cenários de crença e pintam-nos com o sangue dos inocentes?

É sobre isso que penso todos os dias (entre outros pensamentos que, felizmente, me consagram como produto acabado da minha muito própria utopia).

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